"Flama": a trincheira poética do cronista Severino Francisco
'A poesia nos salva das maiores pragas de nosso tempo', diz o jornalista de Brasília, que acaba de lançar seu primeiro livro de poemas
Por
Alexandre de Paula
18/08/2021 04:00 - Atualizado em 17/08/2021 22:22
Arriscar-se em outro ofício depois de uma carreira consolidada é tarefa complicada. O goiano Severino Francisco, jornalista do diário Correio Braziliense e elogiado cronista da capital federal, ousou fazer esse caminho ao lançar um livro de poemas. Em “Flama”, ele exibe poética concisa e densa que dialoga com Drummond, Clarice Lispector e Manoel de Barros.
“Quando você se mete a escrever versos no Brasil, tem de se deparar com os grandes em busca de sua voz. Esse diálogo é a mistura de humilhação e provocação. Mas se você ficar só na reverência, não faz a sua poesia. É preciso se posicionar, confrontar com o seu olhar”, diz Severino.
LINGUAGEM
A marca da poesia aparece nas crônicas de Severino, mas os poemas trazem outro tipo de proposta.
“Se você tem sensibilidade ou instinto para a poesia, ela vai se manifestar de alguma forma em tudo o que você faz. Mas há diferenças de linguagem e de forma: a crônica é mais dispersiva; a poesia do verso é mais concentrada e tensa”, afirma o escritor.
Severino cita o caso de Rubem Braga, que, ao escrever poemas, adotou estilo mais convencional que o de suas crônicas, espalhando poesia de fazer inveja a Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira.
A capa despojada de “Flama”, totalmente em branco com o título em fonte preta, contrasta com o interior do livro. Os poemas ganham a companhia de ilustrações expressivas do artista plástico Wagner Hermusche, que vive confinado no cerrado bravo nas proximidades de Brasília.
“Hermusche teve uma intuição e colocou Clarice Lispector com o corpo de esfinge egípcia, metade humana, metade animal, coroada por um feixe de pepalanto. Com isso, indicou a trilha a ser explorada”, revela Severino, referindo-se à planta conhecida como chuveirinho- do-cerrado.
“Ele utilizou a flora nativa para fazer conexões simbólicas com os poemas, embora só alguns sejam sobre Brasília. Acho que situou o livro em Brasília sob um ângulo interessante, que funciona plasticamente”, acrescenta.
O escritor acredita na poesia como forma de resistência neste país em que o negacionismo e a vulgaridade são exaltados diariamente por governantes. A liberdade do poema se contrapõe ao autoritarismo que se tenta instaurar no Brasil. “A poesia nos salva das maiores pragas de nosso tempo”, defende.
“Nos tempos em que lecionava, eu tinha uma aluna chamada Andreia, que anotava os poemas de Carlos Drummond em um caderninho. Eu dizia: 'Andreia está salva'. E a turma perguntava: 'Salva de quê'?. Eu replicava: 'Salva da mesmice, da desumanização, da manipulação, da massificação, da estupidez e da burrice.”
A poesia de Severino é mais forte do que a instantaneidade e a pressa de um mundo pautado por vídeos de 15 segundos e pela autoexposição constante. “A poesia é a tecnologia mais sofisticada que existe”, garante o escritor. “Ela é a possibilidade de transcendência. Estou mais interessado na flama do que na fama.”
O autor se formou em jornalismo e exerce a profissão desde 1978. Fez mestrado em literatura na Universidade de Brasília (UnB) e deu aulas de jornalismo e estética no Uniceub, na capital federal. Escreveu o livro “Da poeira à eletricidade – Uma história da música em Brasília” e a biografia do artista plástico Athos Bulcão.
A flora do cerrado inspirou as ilustrações de Wagner Hermusche para "Flama" (foto: Wagner Hermusche/reprodução)