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Marcia Tiburi fala sobre o 'complexo de vira-lata' no Sempre um Papo

A filósofa está radicada na França, de onde participa da edição virtual do projeto, sobre seu novo livro, no qual faz uma 'análise da humilhação brasileira'


24/08/2021 04:00 - atualizado 24/08/2021 07:38

A filósofa Marcia Tiburi está radicada na França, de onde participará da edição virtual do Sempre um Papo (foto: Simone Marinho/Divulgação)
A filósofa Marcia Tiburi está radicada na França, de onde participará da edição virtual do Sempre um Papo (foto: Simone Marinho/Divulgação)

Um sentimento de humilhação herdado do período colonial e interiorizado pelos brasileiros em nível social e político – é o que a escritora Marcia Tiburi investiga em seu novo livro, cujo título evoca Nelson Rodrigues: “Complexo de vira-lata: análise da humilhação brasileira”. 

A obra é o mote da participação da autora no projeto Sempre um Papo, nesta terça-feira (24/08), às 19h, com mediação de Afonso Borges e transmissão on-line, ao vivo e gratuita. Autora dos best-sellers “Como conversar com um fascista” e “Feminismo em comum”, entre dezenas de outros títulos, Marcia Tiburi diz que escreveu “Complexo de vira-lata” movida pelo desejo de escrutinar aquilo que é presença constante em todo indivíduo que vive em países como o Brasil: a colonização e seus efeitos.

“Escrevi pelo desejo de compreender nossa matriz de subjetivação mais fundamental, que é a colonização. Me refiro ao modo como somos formados, o que implica o modo como pensamos, operamos e agimos”, diz. 

Em palavras mais simples, ela explica que não se pode escapar do fato de que a população brasileira é marcada profundamente pelo fator da colonização. “Um dos aspectos que, a meu ver, é fundamental para compreender isso é o que Nelson Rodrigues chamou de complexo de vira-lata”, salienta.

O termo surgiu numa crônica do célebre dramaturgo e cronista, escrita em 1958, sobre a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1950. Rodrigues defendia que a equipe tinha tudo para vencer e, ainda assim, foi derrotada. 

No seu entendimento, o time brasileiro não teve autoestima para vencer. Marcia avalia que superar esse complexo de vira-lata passa necessariamente por um processo de elaboração de seu caráter simbólico, dos elementos imaginários dessa experiência de ser colonizado.

''Escrevi pelo desejo de compreender nossa matriz de subjetivação mais fundamental, que é a colonização. Me refiro ao modo como somos formados, o que implica o modo como pensamos, operamos e agimos''

Marcia Tiburi, filósofa


PASSADO

“Precisamos elaborar nosso passado, e para isso precisamos conhecer esse passado. Não temos futuro sem avaliar o que aconteceu ao longo da nossa história. O passado do Brasil implica a colonização, a escravização, a ditadura militar e tudo o que foi perpetrado pelos governos desde a chegada dos colonizadores até hoje”, afirma. 

Ela destaca que é preciso avaliar o lastro histórico para entender como o Brasil se tornou o país que é na atualidade, o que passa pelo reino da Espanha, o reino de Portugal e todas as relações estabelecidas na era das grandes navegações. Isso justifica, segundo a autora, o espaço que é dado no livro à figura de Cristóvão Colombo e ao que ela denomina “complexo de Colombo”.

“É uma reflexão ampla sobre os aspectos que sobressaem quando nos perguntamos quem somos. Essa é a pergunta que norteia o livro. De um ponto de vista filosófico, psicanalítico e também sob outros pontos de vista, é sempre importante que saibamos compreender nossa própria formação. Quem somos e o que nos tornamos.”

Segundo a filósofa, no Brasil de hoje essa avaliação da memória demanda uma atenção redobrada, em razão do estado de “catástrofe política, econômica e social” que assola o país. “Onde essa situação atual nasce? São questões que não ficaram no passado, elas se renovam, é algo que ficou recalcado, e o que fica recalcado cobra seu preço em determinado momento da história. Estamos pagando hoje um preço por algo que não começou em 2018, não começou em 2016, é algo que vem da ditadura, vem da escravidão, vem de séculos atrás, cumulativamente. Precisamos fazer essa elaboração se quisermos ter futuro”, avalia.

''Onde essa situação atual nasce? São questões que não ficaram no passado, elas se renovam, é algo que ficou recalcado, e o que fica recalcado cobra seu preço em determinado momento da história. Estamos pagando hoje um preço por algo que não começou em 2018, não começou em 2016, é algo que vem da ditadura, vem da escravidão, vem de séculos atrás, cumulativamente. Precisamos fazer essa elaboração se quisermos ter futuro''

Marcia Tiburi, filósofa


MULTIDISCIPLINAR

Marcia aponta que, assim como suas obras pregressas, “Complexo de vira-lata: análise da humilhação brasileira” se vale das mais diversas fontes e mantém o caráter multidisciplinar que caracteriza sua escrita. Para fazer essa análise da humilhação, que a autora considera ser a base da guerra de classes – e que explica a submissão e obediência da população mesmo num cenário de flagrantes injustiças –, a obra abarca conhecimentos da psicanálise, da história, da literatura e da filosofia. 

“Como sou professora de filosofia, as fontes filosóficas sempre me interessam, mas também as fontes literárias, artísticas e outras tantas. Esse livro, por exemplo, estabelece um diálogo com áreas da psicanálise. E eu não perco de vista o fato de que Freud era um pensador multidisciplinar. Mas ‘Complexo de vira-lata’ também recorre a fontes imagéticas, que considero muito importantes”, diz.

Ela ressalva que, a despeito da complexidade que tal análise multidisciplinar sugere, o livro é simples e acessível. “Eu pretendia fazer um livro que, por mais denso que seja do ponto de vista da pesquisa, pudesse tocar nas questões diretamente e respondê-las também da maneira mais direta. Eu me refiro a uma linguagem que é simples, é explicativa, que não pressupõe muita coisa do leitor. Queria fazer um livro aberto a todas as pessoas, fácil de ler e que conseguisse efetivamente conectar o leitor com essa questão.”

Marcia saiu do Brasil em 2018, passou uma temporada nos Estados Unidos e, desde 2019, mora na França. Ela afirma que o olhar de fora não mudou a visão que tem do Brasil. “Quando a gente lida com filosofia, um dos primeiros elementos metodológicos de uma análise é a distância. O olhar de fora não é um processo simplesmente geográfico, é um processo hermenêutico, então, mesmo dentro do Brasil, sempre olhei para o país com uma distância hermenêutica, e sempre pensei nossa cultura em comparação com outras culturas, pois é o que me permite empreender um diálogo entre elas”, diz.

Ela chama a atenção, contudo, para o fato de que o Brasil já é, naturalmente, um país multicultural, o que torna mais árduo o trabalho de análise comparativa em relação a outros povos. Marcia considera, ainda, que o Brasil tem uma história que compreende vários elementos e aspectos distintos, que envolvem os diversos povos que o compõem. 

A autora também ressalta o fato de que o país não foi palco de uma colonização única, mas complexa e multifacetada. “Tem uma fonte originária que, a meu ver, está no momento em que a chegada foi chamada pelos colonizadores de descoberta. Nós, pensadores anticolonialistas, chamamos de invasão”, destaca.

A filósofa conta que “Complexo de vira-lata” é fruto de pesquisas anteriores, realizadas para obras pregressas, porém é um trabalho organizado e orientado pela expressão cunhada por Nelson Rodrigues. “Esse complexo de vira-lata a gente experimenta estando dentro ou fora do Brasil, porque é nuclear para nós. Tem gente que diz que é brasileiro e tem orgulho de ser, não tem complexo de vira-lata, mas isso é relacionado ao nosso sadomasoquismo cultural e político. É uma autoimagem de pessoas bastardas e sem estirpe, e implica uma comparação com outros povos que têm outras histórias que julgamos muitas vezes melhores que a nossa.”

Ela ressalta que a humilhação está presente em inúmeros gestos, como na forma como as pessoas se posicionam e agem diante de outras por se considerarem melhores. É a lógica da medida e da hierarquia, típica da sociedade capitalista em que vivemos, segundo a autora.

Passa pela cultura da humilhação, porque nosso olhar já é condicionado a uma lógica da mensuração, a gente pensa em superior e inferior. Isso não foi construído por nós, é herdado da Europa, por isso é que falo tanto no ‘complexo de Colombo’. Tem várias páginas do livro dedicadas a isso”, pontua.

''Tem uma fonte originária que, a meu ver, está no momento em que a chegada foi chamada pelos colonizadores de descoberta. Nós, pensadores anticolonialistas, chamamos de invasão''

Marcia Tiburi, filósofa




“Complexo De Vira-Lata: Análise da Humilhação Brasileira”
• Márcia Tiburi
• Record/Civilização Brasileira (196 págs.)
• R$ 27,90


#SempreUmPapoEmCasa com Marcia Tiburi
Nesta terça-feira (24/08), às 19h, no YouTube, Facebook e Instagram do Sempre Um Papo


AUTORA FOI CANDIDATA

Marcia Tiburi estudou artes e filosofia. É autora de obras importantes para o pensamento crítico contemporâneo, tais como “Feminismo em comum: para todas, todes e todos” (Rosa dos Tempos), “Delírio do poder: psicopoder e loucura coletiva na era da desinformação”, “Ridículo político: uma investigação sobre o risível, a manipulação da imagem e o esteticamente correto” (Record) e “Como conversar com um fascista: reflexos sobre o cotidiano autoritário brasileiro” (Record). Participou das eleições de 2018 como candidata a governadora do estado do Rio de Janeiro pelo Partido dos Trabalhadores (PT). É colunista da Revista Cult.


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