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Estado de Minas ARTES CÊNICAS

Festival com 80 atrações destaca a diversidade do circo contemporâneo

Palhaços filosofam sobre a morte, derrubam o tabu da gordofobia e defendem a valorização dos corpos de anões e transexuais no picadeiro


29/08/2021 04:00 - atualizado 29/08/2021 07:31

A finitude da vida inspirou o espetáculo mineiro 'Circo Misteriu', de Esio Magalhães (C)(foto: Arthur Magalhães/Divulgação)
A finitude da vida inspirou o espetáculo mineiro 'Circo Misteriu', de Esio Magalhães (C) (foto: Arthur Magalhães/Divulgação)

As inovações, os desafios e a importância da arte circense em meio à pandemia de COVID-19 são temas da sexta edição do Circos – Festival Internacional Sesc de Circo 2021, cuja programação on-line e gratuita vai até sábado (4/09). Cerca de 80 atrações, entre espetáculos, debates e atividades formativas, demonstram a revolução do picadeiro.

A agenda tem 11 espetáculos transmitidos de unidades do Sesc, quatro estreias mundiais e três trabalhos inéditos no ambiente virtual. “Exceções à gravidade”, apresentada há mais de
40 anos pelo norte-americano Avner Eisenberg, é a atração internacional. As transmissões podem ser acompanhadas no canal do Sesc São Paulo no YouTube.

BARRACÃO

Uma das estreias é mineira: o espetáculo “Circo Misterium”, dirigido e protagonizado pelo belo-horizontino Esio Magalhães, da Cia. Barracão Teatro. Por meio da palhaçaria, ele aborda temas delicados como a finitude da vida e a diversidade religiosa. A exibição ocorrerá na sexta-feira (3/09), às 19h.


No portal entre os dois universos, Zabobrim se depara com divindades das matrizes judaica, cristã, africana, islâmica, espírita, budista e dos povos originários. Em “Circo Misterium”, a abordagem é mais existencial do que religiosa, pois o espetáculo trabalha a ideia de seres imortais, em vez de deuses.

“Cada imortal aparece perguntando para o palhaço: ‘É comigo que você vem?’. E ele vai entrar no portal conforme aquilo em que acredita. Cada um (dos imortais) lhe apresenta sua relação com a vida e com a morte”, adianta Esio Magalhães, um dos fundadores da Cia Barracão Teatro.

Nesse processo, Zabobrim conhece um cientista que faz pesquisa para entender o que ocorre do outro lado do portal.

O espetáculo surgiu do desejo de Ésio de discutir a diversidade religiosa em meio à intolerância, principalmente em relação às matrizes africanas e aos povos indígenas. “São ataques fundamentalistas, extremistas, que querem acabar com a fé do outro para sobrepujar a sua. Isso não tem sentido, são maneiras muito distintas de explicar a existência, a nossa relação com o mundo e com o divino”, afirma o artista mineiro.

covid-19 A pandemia do novo coronavírus influenciou “Circo Misterium”. A doença deu o mote sobre a finitude da vida. “A morte está rondando a gente de forma tão próxima e avassaladora, todo mundo perdeu alguém neste um ano e meio. É uma comoção mundial, e a gente estava muito tocado por isso. A ideia de trabalhar a temática era antiga, mas acho que agora confluíram todas as circunstâncias e afetos”, explica Esio Magalhães.

O espetáculo se propõe a quebrar tabus, mostrando que palhaçaria é coisa séria. O artista mineiro revela que sempre busca abordar temas complexos por meio da figura do palhaço.

“O Roberto Benigni fala que só o palhaço consegue se aprofundar na tragédia humana, pois ele mergulha na tragédia, mas consegue sair dali”, comenta Ésio, referindo-se ao italiano que ganhou o Oscar de melhor ator, em 1999, por sua atuação como Guido em “A vida é bela”. Ele faz o papel de um judeu que inventa brincadeiras para distrair o filho pequeno num campo de concentração nazista.

 “Gosto muito desse conceito, porque o palhaço é aquele que sofre, apanha, perde. Ele não é uma figura heroica. Ao mesmo tempo, segue em frente, assim como todos nós. Somos vulneráveis diante da natureza, é incontestável a nossa fragilidade. O palhaço é a representação muito importante da nossa humanidade, ele fala de coisas sérias”, afirma Esio Magalhães.

“Circo Misterium” celebra a vida e a diversidade. “De certa maneira, é a mensagem otimista de que a vida vale a pena. A gente precisa colocar sentido na nossa vida para seguir em frente”, aponta o artista. E Zabobrim tem papel fundamental nessa abordagem. “Como o palhaço é a figura que nos faz rir de nós mesmos”, acredita Magalhães.


Prot(agô)nistas luta para dar visibilidade ao artista negro(foto: Noelia Najera/Divulgação)
Prot(agô)nistas luta para dar visibilidade ao artista negro (foto: Noelia Najera/Divulgação)

Quilombo sob a lona


“Prot(agô)nistas – O movimento negro no picadeiro”, criação do coletivo Prot(agô)nistas, é uma das atrações deste domingo (29/08). Com 25 artistas negros em cena, o espetáculo apresenta vários números circenses, entre humor, dança, música, acrobacia e malabarismo.

Duas horas antes de a trupe se exibir, às 19h, o documentário “Protagonistas – Estar vivo é nossa maior resistência” vai ao ar retratando os bastidores da montagem e discutindo a realidade do grupo durante a pandemia.

Com integrantes ligados ao circo, à dança e à música, o grupo paulistano surgiu com o objetivo de dar visibilidade a artistas circenses negros. O espetáculo, que estreou em 2019, potencializou a formação do coletivo, descrito como “aquilombamento artístico” por Ricardo Rodrigues, diretor e idealizador de “Prot(agô)nistas”.

Ele diz que cada integrante da trupe tem o seu momento de protagonismo. Um faz evoluções circenses junto de outro que interpreta a canção que ele próprio escreveu e foi incorporada ao espetáculo do coletivo.

A mineira Verônica Santos faz o papel da bailarina no clássico número com o palhaço. Ao som de “Neguinha sim”, ela “voa” pelo palco com seu black power em meio a passos de dança africana.

O espetáculo convida a plateia a contemplar a beleza negra na dor, no humor e na poesia. A narrativa transita pelo circo clássico, dialogando com a realidade dos afrodescendentes. Aborda o extermínio da população negra e os “rolezinhos” (lazer de moradores da periferia criminalizado no país), mas celebra expressões artísticas do negro.

“O Brasil é um país de maioria negra, mas artistas negros potentes não conseguem espaço digno para a visibilidade de seu talento”, destaca o diretor. “Prot(agô)nistas” defende o fim do apagamento da subjetividade negra no circo, reforça. “Por que só bater a estaca (da lona), recolher o bilhete e vender pipoca? Nós vamos para a cena. Venha ver o que a gente sabe fazer no palco”, convida Ricardo Rodrigues.


Ana Flavia Garcia, a palhaça Ana Tirana, diz que os 'freak' têm poder (foto: José Regino/divulgação)
Ana Flavia Garcia, a palhaça Ana Tirana, diz que os 'freak' têm poder (foto: José Regino/divulgação)

A potência poética do diferente

Entre os vários debates, a mesa-redonda “Corpos circenses” aborda a multiplicidade no picadeiro. Ao longo dos séculos, os chamados “corpos atípicos” – como a Mulher Barbuda, anões e a Monga – foram acolhidos pelo circo, embora exibidos como figuras bizarras.

Nos últimos anos, artistas de diferentes biótipos vêm conquistando seu espaço, exibindo competência técnica e desconstruindo preconceitos.

debate Essa diversidade será tema de mesa-redonda na quinta-feira (2/09), reunindo o ator e palhaço Giovanni Venturini, que tem nanismo, a contorcionista transexual Vi Marquez e a palhaça Ana Flavia Garcia.

“Me senti convidada a fazer palhaçaria porque foi a linguagem em que me senti acolhida enquanto corpo gordo. Muito mais do que no teatro”, relata Ana Flavia Garcia, a palhaça Ana Tirana, com 28 anos de experiência. Piadas relacionadas à gordofobia nunca fizeram parte do trabalho dela.

 “Sempre entendi como potência a poética de me tornar flecha antes de ser alvo. Quando o circo acolhe os ‘freaks’, que historicamente são corpos atípicos, a gente se torna os estranhos que fazem coisas que os outros não fazem. Isso é um grande poder”, defende Ana Flavia.

No entanto, ela enfrentou problemas em sua trajetória circense. “Não me senti representando alguma coisa, me sentia representada. Havia também escassez dessas presenças. Eu não era uma palhaça gorda do Distrito Federal, era a palhaça gorda do DF”, relata.

“Durante muito tempo, pensava que o riso vinha da própria presença do meu corpo gordo, que o risível era ele. Demorei muito tempo para entender que, na verdade, é um monte de tecnologias associadas”, afirma.

Aos poucos, Ana Flavia foi construindo sua presença no palco, alterando as formas de palhaçaria e entendendo que o riso também é debate público. No ano em que exibia seu maior peso (164kg), ela ganhou o prêmio de melhor atriz do Sesc Teatro Candango (DF) com o solo “Tsunami”.

Mesmo depois de se submeter à cirurgia bariátrica e treinar levantamento de peso, Ana se sente uma “criatura”, devido ao corpo flácido, “cheio de pele solta”. No entanto, isso se torna uma potência, artisticamente falando, pondera.

Para Ana Flavia, a evolução da perspectiva “freak” no circo se dá, agora, sob novo olhar. “Estamos começando a debater isso. Até muito pouco tempo atrás, a gente não tinha nem presença enquanto existência dentro do circo”, relata.

troca A mesa-redonda “Corpos circenses” é importante por abrir espaço para artistas como ela. “Estou louca para me encontrar com essas pessoas, quero saber o que elas pensam”, comenta Ana Flavia. Por outro lado, a artista reivindica mais do que representatividade.

“É importante saber o que pessoas como eu estão produzindo enquanto arte, não só discutindo enquanto existência. É muito interessante a gente ter espaço para trazer essas pautas, mas que a nossa produção artística seja reverenciada e observada, pois não estamos pedindo licença, nem crachá de ‘café com leite’”, conclui.

PROGRAMAÇÃO


  HOJE (29/08)

•12h – Filmes. “Vídeos de circo? Tem, sim, senhor”
•17h – Vídeo “Prot(agô)nistas – Estar vivo é nossa maior resistência”
•19h – Espetáculo “Prot(agô)nistas – O movimento negro no picadeiro”
•21h – Palhaças do Mundo

   SEGUNDA (30/08)

•19h – Espetáculo “Circo Charanga” (ao vivo)

   TERÇA (31/08)

•15h – Painel “Riso como respiro”
•21h – Espetáculo “Exceções à gravidade”

   QUARTA (1º/09)

•15h – Painel “A tela é o picadeiro”
•19h – Espetáculo “CircomUns”    (ao vivo)

   QUINTA (2/09)

•15h – Painel “Corpos circenses”
•19h – Espetáculo “Ela – Em todos os lugares” (ao vivo)

   SEXTA (3/09)

•15h – Painel “O circo longe     dos palcos”
•19h – Espetáculo “Circo Misterium” (ao vivo)

   SÁBADO (4/09)

•15h – Espetáculo “La trattoria”     (ao vivo)
•16h – Trilogia Artinerant’s
•19h – Espetáculo “CachimÔnia” (ao vivo)
•21h – Espetáculo “Retumbantes” (ao vivo)



CIRCOS – FESTIVAL INTERNACIONAL SESC DE CIRCO
Informações: circos.sescsp.org.br. Programação transmitida pelo canal do Sesc SP no YouTube. Vídeos ficarão disponíveis na plataforma até 4 de setembro

*Estagiário sob supervisão da editora-assistente Ângela Faria


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