Jornal Estado de Minas

CINEMA

Filme de Luiz Bolognesi e Davi Kopenawa mostra a luta do povo yanomami


Milhares de anos atrás, havia dois irmãos na floresta: Omama e Yoasi. O primeiro, ao se relacionar com a filha do monstro aquático Teperesiki, deu origem aos seres humanos. O segundo, ciumento e cruel, acabou criando a morte e os males do mundo. Esse é o mito que deu origem aos ianomâmis, povo indígena que vive na floresta amazônica, entre o Brasil e a Venezuela.





Tal história é representada em uma sequência de “A última floresta, novo filme do cineasta Luiz Bolognesi. O longa, que tem pré-estreia on-line nesta quinta-feira (2/09) e chega aos cinemas na próxima semana, é a segunda produção do documentarista e roteirista a tratar da questão indígena.

ETNOCÍDIO 

“Quando estava filmando ‘Ex-pajé’ (2018), que relatava o processo de evangelização por meio do assassinato da figura simbólica de um xamã, já pensava em um filme que mostrasse o contrário. Que retratasse a situação de uma aldeia em que o xamã estivesse com força, resistindo ao etnocídio”, diz Bolognesi.

Ele encontrou tal figura no 
xamã Davi Kopenawa, porta-voz do povo ianomâmi. Coautor, com o antropólogo francês Bruce Albert, de “A queda do céu” (Cia. das Letras, 2015), um dos mais contundentes relatos indígenas contemporâneos, Kopenawa abriu as portas (figurativamente, claro) da aldeia Watoriki, no coração da floresta, na divisa entre Roraima e o Amazonas.






“Nós nos encontramos em Boa Vista (RR) e o convidei não só para ser o protagonista do filme, mas também seu coautor”, continua Bolognesi. Recebeu, como resposta, o convite para sonhar com Kopenawa. “Cinema é um sonho, né, Luiz? Você tem que vir sonhar comigo na minha aldeia. A gente sonha de noite e conversa de dia.” Durante 10 dias, foi exatamente o que os dois fizeram.

Rodado em junho e julho de 2019, “A última floresta” não é um documentário strictu sensu. O neologismo “docuficção” poderia tentar explicar o filme, mas cabe ao espectador fazer sua própria leitura.

“Nós misturamos as coisas. Tem os sonhos deles, que são as narrativas que explicam o mundo e que chamamos de mitos, mas que para eles são a pura verdade. Filmamos também algumas cenas com dispositivo documental. E ainda há coisas que eles representavam”, comenta Bolognesi. O espectador se pega, às vezes, tentando decifrar o que é real e o que não é.





“O roteiro não era fixo, clássico, rigoroso. Tínhamos a história em linhas gerais e íamos filmando com roteiro aberto, como é o modo de pensar dos ianomâmis. Eles não tentam controlar o futuro como nós”, acrescenta o diretor. Bom exemplo disso é a sequência em que após a fala de Kopenawa sobre a chegada de garimpeiros, acompanhamos um grupo de indígenas se preparando – pintura corporal, arco e flecha nas mãos – para o ataque a três homens.

“Uma parte dessa cena realmente estava acontecendo e outra a gente interveio, pedindo para acontecer. As pessoas nunca sabem o que é cada coisa. Demos uma embaralhada e isso eu não abro mesmo, as pessoas erram, não fazem ideia de como foi.” Tudo faz sentido, algo que Bolognesi só conseguiu durante extenso período de montagem.

“Foi na montagem (realizada por Rodrigo Farias) que resolvi que as narrativas – cenas ficcionadas, sonhos, histórias fantásticas – estariam no mesmo patamar, no plano do real. Nos primeiros cortes, as pessoas não entendiam nada, os ‘brancos’ não se conectavam com a história. Foram 10 meses trabalhando para encontrar as medidas. Sinto, pelas reações que tive em Berlim e em outros festivais, que o espectador entende e gosta da provocação”, afirma o diretor. Na edição deste ano da Berlinale, o longa levou o prêmio do público da mostra Panorama.





Bolognesi rodou tudo na língua ianomâmi. Só descobriu o que muitas sequências significavam já na ilha de edição. “Quando eu filmava, sabia pela imagem, pela vibração do ator, se estava bom ou não. Pois os tradutores que me acompanhavam falam poucas palavras em português. Eu tinha sequências de 12 minutos e quando perguntava ao tradutor, ele falava que a pessoa tinha dito que iria dormir. Mas como, se ele falou por 12 minutos? Então, legendamos depois todo o material bruto.”

Davi Kopenawa e seu filho já assistiram (e aprovaram) à “A última floresta”. Bolognesi conversou de Boa Vista com o Estado de Minas. Preparava-se para embarcar para a aldeia para a primeira exibição do filme para os ianomâmis. Nessa sessão, a primeira a que os indígenas vão assistir, a produção incluiu gerador, tela, projetor e caixa de som. “Será durante a reunião de 40 líderes ianomâmis de várias áreas. É o único público que não vai precisar de legenda”, finaliza Bolognesi.

“A ÚLTIMA FLORESTA”

Filme de Luiz Bolognesi. Pré-estreia nesta quinta-feira (2/09), das 19h às 23h, em www.itauculturalplay.com.br. Amanhã (3/09), às 18h, o diretor participa de live no YouTube (www.youtube.com/itaucultural). Gratuito. Na próxima quinta (9/09), o longa estreia nos cinemas