"Posso demorar três, quatro, cinco anos para publicar um livro, porque fico a editar, sobretudo a apagar"
Ondjaki, escritor
O recolhimento compulsório durante a pandemia foi muito produtivo para o escritor angolano Ondjaki, de 43 anos. Terminou um romance, um livro infantil, filmou um curta-metragem, abriu uma livraria e uma editora em Luanda. E ainda plantou várias árvores. “Só faltou um filho”, brinca ele, que tem parte de sua produção recente lançada no Brasil pela Pallas Editora.
RITMO
Estão sendo relançadas a coletânea de contos “Os da minha rua”, um de seus títulos mais conhecidos, e “Há prendisajens com o xão”, outra compilação de poemas. “Hoje, tenho publicados 25 livros, entre poesia, romance e contos. Cada livro aparece um pouco como uma surpresa. A primeira coisa é a ideia, e a partir do ritmo dela, que respeito muito, vem o formato”, diz ele.
Na quinta-feira (9/9), às 17h, o autor participa de live, a convite da revista Quatro Cinco Um!, no Instagram da publicação (@quatrocincoum!).
Ondjaki é nome celebrado da literatura angolana. Com vinte anos de carreira, livros traduzidos para vários países, vivência em outros lugares (morou no Rio de Janeiro entre 2008 e 2015) e prêmios prestigiosos – o Jabuti em 2010, na categoria juvenil, por “AvóDezanove e o segredo do soviético”; e o José Saramago em 2013, pelo romance “Os transparentes” –, sua obra vem sendo marcada pela oralidade.
“Meu estilo está perto da oralidade na poesia e no livro infantil, como em ‘Os da minha rua’, em que o próprio narrador é personagem e é uma criança. Então, a linguagem é mais coloquial. Já em ‘A estória do sol e do rinoceronte’ trabalho com mitos fundadores, que não são necessariamente os mitos tradicionais”, explica ele, que se define como um escritor da reescrita.
“No caso do romance, preciso planificar, arranjar tempo. Leio todos os dias, sobretudo poemas. A escrita é uma questão de espera às vezes angustiante, que leva um, dois anos. Posso demorar três, quatro, cinco anos para publicar um livro, porque fico a editar, sobretudo a apagar. Ou seja, meu tempo de escrita envolve a revisão”, comenta.
A obra de Ondjaki traz muito de Angola e passa, obrigatoriamente, pela memória, seja pessoal ou histórica. “Os autores angolanos, por uma questão estrutural, já que o país foi ocupado durante cinco séculos, trazem muitos relatos de guerras e libertações, o que é inevitável”, comenta.
Ondjaki nasceu Ndalu de Almeida. Adotou o nome que tem vários significados na língua umbundo, do Sul de seu país. Guerreiro é um deles; aquele que enfrenta desafios é outro. Para o autor, o mais desafiador na literatura escrita em português é os títulos circularem pelos oito países de língua portuguesa.
“O Brasil, no momento, tem recebido alguns escritores de língua portuguesa no continente africano. A grande dificuldade agora é para que o autor brasileiro entre em Portugal. Sinto que o Brasil tem acolhido melhor os autores de outro país, e falo dos de literatura contemporânea”, afirma.
“Para nós, angolanos, a grande dificuldade é que nossa literatura seja incluída nos currículos escolares. Eu tenho livros adotados no Brasil e em Portugal, mas não há um plano curricular que inclua obrigatoriamente a literatura angolana”, lamenta.
Ondjaki mudou-se para o Rio por questões pessoais e voltou para Luanda quando achou ter chegado o momento. Espera retornar ao Brasil em novembro, para participar de um evento literário em São Luís, no Maranhão.
“O que lamento no Brasil é o imenso grau de racismo e desigualdade social que testemunhei no país, assim como lamento o racismo e a desigualdade em qualquer ponto do planeta. O país precisa urgentemente de novos líderes”, afirma.
CRISE
A Angola que Ondjaki reencontrou na volta para casa foi melhor do que a que deixou, mas há muitos pontos incipientes. “Em certos aspectos, a vida está melhor. Politicamente, por exemplo. Tivemos um mesmo presidente durante 38 anos (José Eduardo dos Santos, que deixou o poder em 2017, quando foi precedido por João Lourenço). Mas a crise econômica mundial afeta muito Angola, e a desigualdade social é uma questão difícil. A guerra acabou em 2002, mas ainda somos um país em reconstrução. E não só de estradas, mas cívica e moral.”
Recentemente, Ondjaki abriu a livraria Kiela e a editora Kacimbo. A oferta de livros não é pequena, mas ele sente a ausência de novos autores.
“Gostaria de publicar escritores radicalmente jovens, com menos de 30 anos. Eles aparecem muito pouco. Falo da literatura escrita, pois há outras, como a poesia dita e cantada, mas estamos um pouco atrasados em relação a isso. No meu entender, é consequência da guerra em Angola e da falta de investimento em cultura e educação”, finaliza.
“A ESTÓRIA DO SOL E DO RINOCERONTE”
Livro infantil de Ondjaki
Ilustrações: Catalina Vásquez
Pallas Editora
28 páginas
R$ 63
“HÁ PRENDISAJENS COM O XÃO (O SEGREDO HÚMIDO DA LESMA & OUTRAS DESCOISAS)”
Poemas de Ondjaki
Pallas Editora
68 páginas
R$ 30
“MATERIAIS PARA CONFECÇÃO DE UM ESPANADOR DE TRISTEZAS”
Poesia de Ondjaki
Pallas Editora
80 páginas
R$ 32
“OS DA MINHA RUA”
Contos de Ondjaki
Pallas Editora
128 páginas
R$ 35
“VERBETES PARA UM DICIONÁRIO AFETIVO”
Prosa e poesia escritas por Ondjaki, Ana Paula Tavares, Manuel Jorge Marmelo e Paulinho Assunção
Pallas Editora
204 páginas
R$ 49
Dicionário afetivo conecta Brasil, Angola e Portugal
“Olhares poéticos numa quase mesma direção”. É dessa maneira que Ondjaki define o livro coletivo “Verbetes para um dicionário afetivo”, lançado há cinco anos em Portugal, que ganha agora sua primeira edição brasileira. É uma ourivesaria de prosa e poesia que o uniu a autores do Brasil (Paulinho Assunção), Portugal (Manuel Jorge Marmelo) e Angola (Ana Paula Tavares).
A iniciativa veio do mineiro Paulinho Assunção e a gênese da obra tem quase 20 anos. Em 2003, ele lançou em Portugal o livro de contos “Pequeno tratado sobre as ilusões”. Marmelo, então repórter do jornal Público, escreveu uma crítica elogiosa e os dois ficaram amigos.
“Era a época heroica dos blogs, eu vinha publicando uma série de textos sobre livros que não existiam, bem à moda borgeana. Um desses textos que inventei, provocativo, gozador, era sobre um livro imaginário, escrito por tal MJM, as iniciais de Manuel Jorge Marmelo, com o título ‘Os olhos do homem que chorava no rio’. Jorge percebeu no meu texto um desafio. E resolveu tornar real esse livro inexistente a quatro mãos com a poeta angolana Ana Paula Tavares”, relembra Paulinho Assunção.
O livro de Marmelo saiu em 2005 e, como “autor inicial do crime”, Assunção foi apresentá-lo em um encontro de literatura em Portugal. Lá conheceu pessoalmente o trio que originou não só “Verbetes”, mas outros projetos.
Memória
Para o livro a oito mãos, Assunção tinha como ideia “que cada tema geral funcionasse como indutor de histórias e lembranças de cada um de nós no Brasil, em Portugal e Angola. Pelos verbetes, revisitaríamos a nossa memória afetiva de lugares, coisas, bichos, fantasmas”. Segundo ele, esse processo ocorreu “sem pressa, sem aflições para concluí-lo, de quando em quando retomávamos o livro, acrescentávamos um ou outro verbete.”
Ondjaki foi o último a entrar no projeto, concluído em 2015. “Destaco sobretudo na obra dele um traço que muito me agrada: a dicção lúdica, de louvor aos brinquedos da fala e da escrita, dicção que se origina nos veios auríferos mais faiscantes e imaginantes da língua, seja das matrizes angolanas, seja nas heranças inventivas que vêm, por exemplo, de Luandino Vieira, Manoel de Barros ou Guimarães Rosa”, diz Assunção.
Ondjaki retribuiu o convite para “Verbetes”. Vai publicar, por sua própria editora, o novo livro do autor mineiro, por ora chamado “Breviário das doidices”.
“Foi um convite que muito me alegrou: aos 70 anos, entrar para o catálogo da jovem editora em Luanda”, conta Paulinho Assunção, que está na fase “de arremates” da obra, que reúne poemas inéditos escritos nos últimos 20 anos.