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Estado de Minas ENTREVISTA

Alberto Manguel: "A literatura não tem missões, oferece possibilidades"

Em 'Encaixotando minha biblioteca', que acabou de sair no Brasil, o escritor e colecionador argentino fala da importância dos livros em sua vida


06/09/2021 04:00 - atualizado 06/09/2021 07:20

A partir de 2022, Alberto Manguel vai guardar seus livros em Lisboa, no Centro de Estudos da História da Leitura
A partir de 2022, Alberto Manguel vai guardar seus livros em Lisboa, no Centro de Estudos da História da Leitura (foto: Imprensa Nacional/Portugal)
Apaixonado por livros, o escritor argentino Alberto Manguel construiu, ao longo dos anos, uma das bibliotecas privadas mais conhecidas do mundo, famosa pelo conteúdo e pelo que simboliza. São aproximadamente 35 mil volumes, com destaque para raridades, como o primeiro manual de tipografia e ortografia, publicado em Veneza no século 16, ou uma “Bíblia” escrita a mão em pergaminho, de um escritório alemão no século 13.
 
Há também volumes cujo valor é mais sentimental, como a obra que Jorge Luis Borges comprou em 1932 e no qual esboçou a história do conto “A busca de Averróis”, do livro “Aleph – Uma amizade fraterna”, que uniu os dois autores, pois Manguel, quando adolescente, lia textos em voz alta para Borges, que ficara cego.
 

"Meus livros foram organizados principalmente pelo idioma em que foram originalmente escritos"

Alberto Manguel

 
 
A fascinante coleção de livros, no entanto, não teve muitos momentos de paz, obrigada a ser transportada, ao longo de décadas, para diversas cidades de diferentes países. Assim, em 2015, quando se preparava para deixar sua casa medieval no Loire, na França, e rumar para um apartamento em Nova York, que não comportaria tal tesouro, Manguel começou a relembrar os títulos e as bibliotecas que ajudaram na sua formação intelectual, reminiscências que se transformaram no pequeno e simpático volume “Encaixotando minha biblioteca – Uma elegia e dez digressões”, que a Companhia das Letras acaba de lançar no Brasil.

ALEXANDRIA

São digressões que revelam o profundo embasamento característico de sua prosa, observado tanto nas reflexões sobre as idiossincrasias de bibliófilos como ele quanto em análises rigorosas de eventos marcantes, como o incêndio que consumiu a antiga Biblioteca de Alexandria, no ano 48 a.C., destruindo um dos mais significativos e célebres centros de conhecimento humano de que se tem notícia.
 
O contato de Manguel com o livro vem da infância. Nascido em Buenos Aires em 1948, viveu em Israel e no Taiti até se mudar, nos anos 1980, para Toronto, onde se tornou cidadão canadense. Aprendeu a ler por volta dos 3 anos e nunca mais parou.
 
Em cada cidade, acumulou uma quantidade considerável de obras até chegar no ano 2000 à casa medieval na França, um presbitério construído no século 16. Ali parecia ser o porto seguro de sua biblioteca, mas desentendimentos com o governo francês – que fez exigências ridículas, como apresentação de nota fiscal da aquisição de cada livro – obrigaram-no a nova mudança, em 2015, quando deixou os livros encaixotados no Canadá enquanto dava aulas nas universidades americanas de Columbia e Princeton.

LISBOA

A “ressurreição da biblioteca”, como o próprio Manguel diz, ocorreu no ano passado ao receber um convite de Portugal – mais precisamente do Palácio dos Marqueses de Pombal, na Rua das Janelas Verdes, em Lisboa – para dar abrigo digno e definitivo ao seu precioso acervo. Os 35 mil volumes serão o destaque do Centro de Estudos da História da Leitura, a ser inaugurado em 2022.
Um grande alívio para um crítico que constrói seu trabalho à medida que se aprofunda na leitura. Todos os dias, o escritor argentino busca manter o hábito que lhe alimenta o espírito: ler ao menos um capítulo de “A divina comédia”, poema de viés épico e teológico escrito por Dante Alighieri no século 14.
 

"A 'Bíblia' reúne contos populares, fábulas fantásticas, crônicas históricas, poemas eróticos, coleções de ditos, histórias de ficção científica escritas por pessoas diferentes, em épocas diferentes"

 
 
A riqueza do texto, que sempre traz alguma novidade a cada leitura, o incentivou a escrever “Uma história natural da curiosidade” (Companhia das Letras, 2016), em que mapeia os textos que o inspiram como leitor. E o ponto de partida são justamente as 17 questões propostas por Dante.
Tal convivência com os livros rendeu até uma ocupação para Manguel em 2018, quando foi convidado para dirigir a Biblioteca Nacional de Buenos Aires, cargo também ocupado por Borges. Como ele, Manguel traçou vasto caminho oferecido pelos livros, especialmente em “Uma história da leitura”, lançado em 1997 no Brasil.
 
Nesta entrevista, Manguel se revela admirador do brasileiro Monteiro Lobato e fala de sua relação com os livros.
 
 
Como você organizou seus livros? O gênero literário foi determinante para lugares específicos?
Não. Meus livros foram organizados principalmente pelo idioma em que foram originalmente escritos, de forma que “Madame Bovary” em francês estava com sua tradução para o espanhol ou norueguês. Não acredito em gêneros literários.

Não é possível ter todos os livros que se deseja. Quais livros você gostaria de ter?
Os que ainda não descobri. E também muito mais literatura de cordel que coleciono, principalmente do século 19.

Existem livros em sua biblioteca que você associa a fases específicas de sua vida? Um livro que remonta imediatamente à sua infância, por exemplo?
Tenho uma edição alemã dos “Contos de Grimm” com ilustrações fúnebres e caligrafia gótica. Esse é um livro que marcou minha infância com seus medos, suas mortes e suas aventuras mágicas. Também as histórias de Monteiro Lobato (em espanhol), que li com prazer desde os 9 anos.

O isolamento causado pela pandemia permitiu que você fizesse descobertas literárias?
Não especialmente, mas me permitiu ler de forma mais sistemática, pois perdi a noção de tempo convencional: não sabia que dia da semana era e, às vezes, nem a hora. A pandemia me permitiu voltar às crônicas de outras pandemias, como “O diário do ano da peste”, de Daniel Defoe, “Os noivos”, de Alessandro Manzoni, e “A peste”, de Albert Camus. Também descobri o melhor diário desta pandemia contemporânea: “Quel che stavamo cercando” (“O que estávamos buscando”, em tradução livre), do italiano Alessandro Baricco.

Uma biblioteca deve buscar a imortalidade?
Uma biblioteca não pode ser armada com essa intenção, mas com essa espe- rança. É a única imortalidade que não é permitida: a de um livro. Mas não podemos saber qual.

Os livros têm alma como os seres humanos?
Não sei o que você quer dizer com alma. Acredito, como Santo Tomás de Aquino, que alma e corpo são uma unidade. Em vida. Depois, não podemos saber... O mesmo vale para um livro.

Todos os seus livros são considerados importantes, mas o que dizer sobre a “Bíblia”?
A “Bíblia” parece uma invenção do OuLiPo, corrente literária criada em 1960 e cujos membros inventaram regras para escrever seus livros e produziram obras como as de Italo Calvino ou Raymond Queneau. Na verdade, “Se um viajante numa noite de inverno”, de Calvino, segue o modelo da montagem da “Bíblia”: um conjunto de textos heterogêneos unidos por um título comum. A “Bíblia” reúne contos populares, fábulas fantásticas, crônicas históricas, poemas eróticos, coleções de ditos, histórias de ficção científica escritas por pessoas diferentes, em épocas diferentes, e reunidas sob a assinatura de um único autor.

Suas leituras constituem um conjunto de espelhos nos quais cada momento e cada lugar de sua biografia estão presentes?
Inevitavelmente. Eu sou um canibal de mim mesmo.

No livro “A biblioteca à noite” você diz  que os livros transmitem a voz das  vítimas, dos derrotados. Essa é uma  das missões da literatura?
A literatura não tem missões, oferece possibilidades. E essa é uma dessas possibilidades.

(foto: Companhia das Letras/reprodução)
“ENCAIXOTANDO 

MINHA BIBLIOTECA”

  • De Alberto Manguel
  • Tradução: Jorio Dauster
  • Companhia das Letras
  • 184 páginas
  •  R$ 44,90 


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