“Para mim, Brasília foi – e continua sendo – uma ampla e inesgotável temática, porque, atuando como uma caixa de ressonância de toda problemática brasileira, me oferece a oportunidade de conhecer e explorar cada aspecto deste país”, afirma o cineasta Vladimir Carvalho.
O diretor está lançando o filme “Giocondo Dias – Ilustre clandestino”. A política toca o novo longa, detido na figura do baiano comunista, que passou boa parte de sua vida perseguido pela polícia e na clandestinidade.
Aos 86 anos, Vladimir Carvalho não se deixa desencorajar pelo atual massacre às artes no Brasil. “Penso que temos de nos municiar de paciência histórica e chegar à outra margem em 2022!”, comenta. “Vejo, no cinema, um surto de renovação nos métodos: na Lapa (RJ), há um cineclube que só passa filmes inéditos, da moçada nova que vai ali com seu filme debaixo do braço para ser submetido a debates que são tremendamente calorosos. É uma novidade na área, um neocineclubismo”, celebra.
Como o senhor se remodelou aos tempos virtuais? Como vê o streaming?
Penso que conquistamos um espaço infinitamente maior e a adaptação se impôs a todos que lidam com os meios de comunicação. Mesmo agora, com as restrições impostas com a suspensão do modo presencial, os que fazem cinema, como seria previsível, logo se encaixaram no novo cenário. Entendo que o streaming não significa a morte da forma clássica e costumeira de se colocar uma produção no mercado. Pelo contrário, o streaming representa sobrevida para o cinema e será uma convivência proveitosa. Sempre curti a sala de cinema como forma de circulação social dos espectadores, até como possibilidade de diálogo com seus pares. É o velho animal gregário que o homem carrega, em busca de convívio com o outro.
Por que um filme sobre Giocondo Dias?
O Giocondo, personagem de meu documentário, aponta para as transformações que já no seu tempo davam um sinal de alerta àqueles que sabiam interpretar os sinais do tempo. Giocondo, na juventude, foi alcunhado de Cabo Vermelho, uma vez que, na Intentona de 1935, tomou de assalto o quartel ao qual servia em Natal (RN) e disse ao seu comandante: “O senhor está preso em nome do general Luiz Carlos Prestes”. Por milagre, não morreu. Essa lição lhe calou fundo. Ao longo do tempo, durante dois terços de sua vida, dedicou-se à luta para convencer os seus companheiros de que a saída para o Brasil não era a luta armada, mas a conquista do povo pelos caminhos do voto prescrito pelo regime democrático. Por isso, ele virou pelo avesso a história do Partido Comunista no Brasil e tanto se destacou com seu jeito manso e humano, que chegou a ponto de substituir Prestes no comando do partido. E, depois de intermináveis batalhas ideológicas, nos anos 1980, reconduziu o partido à legalidade.
O que a visão de Giocondo Dias representa para os tempos de fissuras sociais de hoje?
Nos nossos tempos, adotei para o filme o slogan “Um adeus às armas e um apelo ao diálogo” (presente no cartaz) em reverência à postura histórica de Giocondo. Em virtude disso, esperava que o lançamento do filme de Wagner Moura sobre a figura de Marighella estreasse ao mesmo tempo em que o nosso. Tudo para termos um prélio junto ao público, porque Marighella era tão lendário, enquanto o Giocondo era o seu oposto, ao “pelear” pela luta armada como meio de chegar ao poder. Nada contra o filme do Moura em si, mas para provocar, quem sabe, um salutar debate, nesta hora em que o nosso presidente se esmera na tentativa de armar o povo indiscriminadamente. Seu partido chegou a confeccionar uma bandeira composta toda ela de balas de fuzil! Nesse ponto, acho que meu filme é superatual!
Os 90 anos de Ruy Guerra, as quatro décadas sem Glauber Rocha e os sete anos sem Eduardo Coutinho. O que as efemérides significam para quem esteve, ombro a ombro, ao lado desses gigantes?
Glauber, Coutinho e Ruy são inexpugnáveis de nossa história cinematográfica. Não são simplesmente ícones, são os artífices de um legado de transformação, com o movimento do chamado Cinema Novo, que agrega à cultura brasileira um capítulo último e definitivo do nosso modernismo. Deveríamos, para celebrar essas efemérides, deflagrar um movimento em defesa não só do cinema, mas de toda a cultura tão vilmente atacada pelo governo de Jair Bolsonaro. Talvez ainda possamos recompor as estruturas de sustentação de nosso patrimônio e apagar o fogo maligno que visa destruí-lo.
Como vê, aos 86 anos, um filme seu estreando? Como mantém a vitalidade?
Você me suscitou a lembrança que faz parte de minhas circunstâncias: sou o último sobrevivente da pequena equipe do seminal “Aruanda” (filme de 1960) e rendo aqui minhas homenagens a Linduarte Noronha (diretor), João Ramiro Mello (assistente de direção) e Rucker Vieira (produtor), saudosos companheiros. A propósito, também recordo que da equipe de criação do “Cabra marcado para morrer”, só Antonio Carlos da Fontoura sobrevive. Portanto, reverencio a memória de Eduardo Coutinho, Marcos Farias e Cecil Thiré. Tive a sorte de demorar mais um pouco por aqui e poder tocar meu barco em frente. Esse filme (“Giocondo Dias”) me trouxe um suplemento extra de energia para continuar na faina de sempre. Penso que devo isso à boa cepa que vem do meu avô Esperidião Figueiredo da Silva, descendente dos índios cariri de São João do Rio do Peixe, na Paraíba. Tinha a cor do bronze e uma saúde de ferro.
Numa revisão de sua obra, qual o filme indispensável? Arrepende-se de alguma escolha?
Minha atividade como documentarista tem, inconscientemente, me levado a uma espécie de compasso binário: fiquei nesses mais de 60 anos de ofício entre o campo e a cidade, que, coincidentemente, ou não, compõem a estrutura da sociedade brasileira e têm promovido um fluxo e refluxo mais visível no migrante nordestino, sempre em demanda do Sul maravilha. Nesse sentido, o meu filme “Conterrâneos velhos de guerra” (1992) é como se fosse uma súmula de tudo o que tenho feito, ora com filmes realizados no campo, sobretudo no Nordeste, ora no âmbito urbano. “Conterrâneos...” é uma somatória. Sobre revisões e olhares pelo retrovisor, não tenho do que me arrepender, mas no caso de Giocondo Dias só lamento não o ter alcançado com vida, de forma que pudesse entrevistá-lo e filmá-lo como bem merecia.
"GIOCONDO DIAS – ILUSTRE CLANDESTINO"
Direção: Vladimir Carvalho. Documentário sobre o líder comunista baiano Giocondo Dias (1913-1987), homem de esquerda que passou dois terços de sua vida na clandestinidade. Disponível no serviço de streaming Now