Jornal Estado de Minas

MÚSICA

KL Jay relança disco solo cujas letras são crônicas sobre o Brasil atual


O tempo é rei, dizia Mano Brown numa das faixas do disco “Na batida: Volume 3”, primeiro álbum solo de KL Jay, o DJ do Racionais, lançado em meados de 2001. Impressiona a atualidade das rimas de 20 anos atrás neste trabalho que o universo do rap celebra como o primeiro disco duplo do hip-hop nacional.





“Volume 3” hibernou por duas décadas, virou raridade cult e volta agora às plataformas de streaming com 12 faixas, em vez das 21 originais, devido a pendências relativas a direitos autorais envolvendo samples.

Decano dos DJs brasileiros, KL lembra que o sample está no DNA do rap – boa parte da sonoridade desse gênero musical vem de colagens criadas por mestres das picapes com base em canções ou melodias de outros autores.

KID ABELHA 

“Vai chegar a um ponto em que ninguém vai samplear. No Brasil, cobra-se muito caro pela permissão do sample, muito mais do que no mercado internacional”, diz. KL desistiu, por exemplo, de soltar nas plataformas sua faixa de house baseada no hit “Como eu quero”, do Kid Abelha.





É uma pena, mas vale a pena ouvir as 12 “antigas” dele que estão de volta. O “novo velho disco” reúne RZO, Mano Brown, Negra Li, Xis, Rappin Hood, Potencial 3, MV Bill, Sabotage e Dina Di, entre outros.

Em vários momentos, o álbum de 2001 parece criado para este 2021. Mano Brown, por exemplo, fala de gente que não acredita que a Terra é redonda. “O mundo todo está em crise. Você não vê felicidade em ninguém: nem no pobre, nem no rico. Tá todo mundo desorientado”, diz ele em “Privilégio 2”, “rap-desabafo” de 18min30.

Dá até nó na garganta ouvir “Tudo por você também”. Xis e KL Jay cantavam para suas crianças – hoje adultas – o desejo de felicidade “no universo sem fim no planeta”, apesar “do bairro onde você vai crescer em meio às treta”. Delicada e esperançosa, a faixa também serve de réquiem para Ágatha Felix, de 8 anos, Kauê dos Santos, de 12, Kauan Rosário, de 11, ou Ray Faria, de 14, mortos recentemente em ações policiais nas favelas.





“Tá na TV/ apologia/ Violência é o que tem/ Filmes de tiros/ Fuzis e refém/ Desenhos violentos/ Na casa de alguém/ Repórteres ridículos/ Que antes do juiz/ Julgam e dão o veredito”, rimam RZO e Sabotage em “Piripac”. Com mais de 20 anos, as rimas caem como uma luva para os justiceiros histriônicos de programas vespertinos da televisão.

PIONEIROS 

Dois pioneiros do rap que já se foram – Sabotage (1973-2003) e Dina Di (1976-2010) – agora ressurgem, vigorosos, nas plataformas digitais.

Na faixa “Mente engatilhada”, a moça que encarou (ainda nos anos 1980) o machismo do rap e costumava ouvir “vai pro tanque” durante seus shows avisa: “Eu vim para resolver/ Apontar uma solução/ A mente engatilhada/ E o microfone na mão/ Munição vai ter/ Se as minas resolver se juntar/ Partir pra cima/ Muito mano vai se desesperar”. Naquela época, não se falava no empoderamento feminino e na Lei Maria da Penha.

KL Jay, de 52 anos, diz que seu disco foi feito “na Era de Ouro do rap”. Ao comentar a atualidade das letras, observa: “O mundo atual mudou e não mudou. São sempre dois passos para a frente e um para trás.”





Há mais dignidade, mais consciência sobre questões envolvendo os negros e a periferia, afirma. Já o “passo atrás”, comenta, “está neste governo maldito aí, que defende a morte”.

KL Jay diz que o que mais o incomoda, 20 anos depois de seu “Volume 3”, é a “geração de gente idiota” – inclusive negros – que apoia o retrocesso. A “idiotice geral”, ele afirma, é globalizada, “contaminou pobres, ricos, brancos, pretos e amarelos”. Mas o “Racional” garante já sentir no ar “a energia de que isso vai passar”.

O novo coronavírus interrompeu a rotina deste DJ workaholic, que diariamente costumava animar festas em São Paulo e fora da cidade. Em seu apartamento no Copan, ele guarda 4 mil discos. No começo da pandemia, KL nem ouvia música. Passou a dormir mais, algo inédito para quem quase não ficava em casa. Fez pouquíssimas lives, “só umas quatro”. O Racionais, aliás, recusou todas as propostas, algumas delas tentadoras, por acreditar que este momento exige isolamento.





SELO 

“Mas nunca fiquei sem trampar”, diz KL. Ele formou um coletivo de artistas negros independentes, de 20 a 40 anos, que apoia por meio de seu selo musical. A proposta é abrir portas, oferecendo estrutura mínima – mixagem, masterização, clipes.

Liberdade criativa é o lema da KL Música, cujo elenco reúne Hanifah, Jota Ghetto, Laysa, Emmy Jota, Anarka, Fator do EG e Boka 777, além dos DJs Ajamu, Will e Kalfani. Alguns artistas são da própria família dele. Com mais de três décadas de carreira, KL diz que é dever ajudar os novos.

Vinte anos depois do “Volume 3” – em 2018, lançou o “Volume 2/ No quarto sozinho” –, Kleber Geraldo Lelis comenta que o rap se fortaleceu no país e no mundo com “abertura de novas portas” e “outras ideias”, impulsionadas pelas plataformas digitais.





Porém, deixa claro que a sonoridade do hip-hop dos anos 1990 persiste. “São outros galhos da mesma árvore”, observa, ao falar do presente. Cita como exemplos do talento da nova geração Leal, Borges, Jota Ghetto, Liz MC, Colombiana, Nic Dias, BK e o mineiro Djonga. Não tem a menor paciência para os “idiotas” e “descartáveis demais”, que buscam o sucesso “falando besteira”.

Por enquanto, KL Jay vem dizendo não a convites para tocar. Talvez em outubro ou novembro se apresente em pequenas casas, seguindo os protocolos sanitários. O Racionais só deve retomar a agenda em abril ou maio de 2022. “Estamos em stand by”, diz, contando que Edi Rock e Mano Brown preparam novos discos solos.


“KL JAY NA BATIDA: VOLUME 3”
.KL Jay e vários artistas
.12 faixas




.KL Música
.Disponível nas plataformas digitais




“O disco soa muito atual”

Roger Deff*
Especial para o EM

“KL Jay na batida: Volume 3” é um disco clássico por ser o primeiro trabalho solo do KL Jay, um dos fundadores do Racionais, referência incontestável no rap brasileiro, e também por todos os nomes que reúne: RZO, Mano Brown, Negra Li, Xis, Rappin Hood, Potencial 3 e MV Bill, além de Sabotage e Dina Di, ícones que não estão mais entre nós.

A proposta era ousada: um CD duplo que celebrava aquele momento de maturidade do rap produzido no país. KL Jay reuniu escolas e gerações diferentes, a exemplo do Consequência, grupo do qual Kamau fazia parte e representou inovação importante na cena. Era uma nova vertente do segmento, assim como o SNJ.

“Só mais um maluco”, do MV Bill, foi lançada neste disco e depois no álbum do Bill, sob nova roupagem. Outra coisa muito legal é ouvir o próprio KL Jay rimando – ele que é o cara dos toca-discos.

A cena representada no “Volume 3” fica bem concentrada no eixo Rio-SP, nos grandes nomes nacionais da época, artistas que tinham proximidade com KL Jay, o que faz muito sentido para a construção do trabalho. O disco soa muito atual tantos anos depois, e versátil também.

*Rapper de BH, Roger Deff fez parte da banda Julgamento, lançou o disco “Etnografia suburbana” (2019) e prepara o lançamento de “Utópico” para este ano






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