Dois jovens irmãos de uma família da classe trabalhadora começam, na Detroit do final dos anos 1980, a distribuir cocaína em pequena escala, a partir da própria casa. Na década seguinte, o negócio cresce, e a organização de transporte e distribuição de drogas se estende para Los Angeles, St. Louis e Atlanta. Já nos anos 2000, é criado um braço do entretenimento, voltado essencialmente para o hip hop, influenciando uma geração inteira.
Este é um resumo da Black Mafia Family (BMF), ou melhor, da trajetória dos irmãos Flenory, Demetrius “
Big Meech
” e
Terry
“Southwest T”. Há lances tão espetaculares (para o bem e para o mal) na vida da dupla que parece coisa tirada de livro. Os dois viviam como os clipes ostentação de hip hop que dominaram as paradas da época. Quando fez 36 anos, Meech arrecadou na festa US$ 100 mil para destinar a animais exóticos.
Aos 46 anos e com uma trajetória profissional e pessoal tão turbulenta quanto a de seus personagens (traficou na juventude, foi vítima de atentado, tornou-se uma potência na música e envolveu-se em ações judiciais), Curtis James Jackson III vem, na última década, se tornando também uma força no audiovisual. “BMF” é apenas uma na dezena de produções recentes que têm seu nome à frente.
''Ninguém questiona 'Scarface' (de Brian de Palma), que tem personagens que são amados. O crime organizado é sempre mostrado nos filmes pela visão dos brancos. Você não mostra como era para os afro-americanos, latinos, russos. E o nível de sucesso que eles tiveram em Detroit e, depois, na música, é muito sofisticado. As pessoas têm que entender quem eram, de onde vieram, o contexto em que viviam''
50 Cent, rapper e produtor de "BMF"
SUCESSO
A produção audiovisual de 50 Cent mais conhecida até aqui é “Power” (2014-2020), cuja trama acompanhou um traficante de drogas que tenta se afastar do crime tornando-se proprietário de uma boate. A história virou uma franquia que gerou, até o momento, três continuações – e há uma quarta a caminho. Também tem a assinatura do rapper “For life”, outro sucesso recente do streaming.
Mas tratar de personagens reais, célebres e vivos – Big Meech cumpre 30 anos de prisão por tráfico e Terry, com a mesma condenação, conseguiu, a partir de maio de 2020, cumprir prisão domiciliar em decorrência de problemas de saúde – é diferente.
“Com a ficção você não precisa de referências, de checar fatos; conta a história que quiser. Agora, uma
história real tem outra intensidade. A imersão tanto de quem produz quanto de quem assiste é diferente”, afirma 50 Cent ao Estado de Minas
.
Ele comprou os direitos de adaptação da história dos Flenory há muitos anos. Inicialmente, o projeto seria um longa-metragem. Há um ano e meio, quando o negociou com a Starz, virou uma série com potencial para muitas temporadas, pois os oito episódios iniciais só contam o início da história.
Os irmãos ajudaram na adaptação, mesmo encarcerados. A comunicação se tornou mais fácil quando Terry foi para casa, em decorrência dos riscos que a pandemia da COVID-19 representavam para a população prisional.
Big Meech tentou, mas não conseguiu o acordo para ficar com tornozeleira em casa (as postagens de Terry nas redes sociais são constantes). Um juiz federal alegou que a libertação do mais velho dos Flenory seria prematura, já que ele continua a atuar no tráfico, mesmo na prisão.
50 Cent defende a realização da série e discorda da ideia de que a produção possa “glorificar o crime”. “Ninguém questiona ‘Scarface’ (de Brian de Palma), que tem personagens que são amados. O crime organizado é sempre mostrado nos filmes pela visão dos brancos. Você não mostra como era para os afro-americanos, latinos, russos. E o nível de sucesso que eles tiveram em Detroit e, depois, na música, é muito sofisticado. As pessoas têm que entender quem eram, de onde vieram, o contexto em que viviam.”
Para 50 Cent, os Flenory só quiseram viver o sonho americano. “O que aconteceu com eles foi em decorrência das escolhas que fizeram. Mas quando se fala se jovens afro-americanos que crescem na pobreza e sem chances, eu os vejo como exemplo de paixão e garra.”
Os Flenory só passaram a usar o nome Black Mafia Family a partir dos anos 2000. Em Atlanta, Meech buscou uma carreira "legítima" no mundo da música com a BMF Entertainment, sua gravadora de hip-hop. Terry se mudou para Los Angeles, onde recebeu enormes remessas de coca, “produto” que seria distribuído para outros grandes centros dos EUA por meio de jatos particulares e limusines. A organização dos Flenorys incluía um exército leal de funcionários e associados como o genro de um prefeito de Atlanta e astros do esporte e da música, além de celebridades.
Para a série “BMF”, 50 Cent se cercou de nomes tão grandes quanto o seu. Snoop Dogg interpreta o pastor Swift, conselheiro dos Flenory, que são cristãos devotos. E Eminem, que ajudou 50 Cent no início da carreira, vive Richard Wershe Jr., mais conhecido como White Boy Rick.
O personagem, que já teve seu próprio filme (“White Boy Rick”, de 2018, com Matthew McConaughey no papel-título) foi o mais jovem informante do FBI (começou a colaborar com 14 anos) e, aos 17, recebeu prisão perpétua por tráfico – no ano passado, após 27 anos de condenação, foi libertado depois de um longo processo.
Na série, Meech é interpretado por seu próprio filho na vida real – Demetrius “Lil Meech” Flenory, aqui em seu primeiro papel. Terry é vivido por Da’Vinchi – os dois se falaram antes das filmagens.
''A história parece ser sobre a cultura da droga, mas é sobre tempos difíceis em que todos queriam ter uma vida melhor. É quase como se você olhar para %u2018Cidade de Deus%u2019. Aqueles garotos do filme encontraram um caminho para viver onde não havia caminhos, um contexto que não dava oportunidade de educação e crescimento às pessoas. O filme serve como um paralelo para %u2018BMF%u2019, só que em línguas diferentes''
Russell Hornsby, ator
“Conversei com Terry e também com a mãe, irmã e vizinhos. Terry é mais organizado, enquanto Meech mais instintivo, tipo ‘vamos ver como vamos fazer’. Para mim, os dois são geniais cada um à sua maneira, e conduziram os negócios de forma muito diferente”, diz Da’Vinchi.
“Antes da série, já conhecia muito da história da Black Mafia Family, não só a questão das drogas, pois fizeram uma das maiores distribuições domésticas na América, mas muito pelo hip hop. Não há como você estar neste país sem saber da importância deles para a música”, afirma o ator.
Russell Hornsby interpreta Charles Flenory, o pai da dupla. Mesmo que no futuro ele vá se envolver com os negócios dos filhos (chegou a ser preso por lavagem de dinheiro), nesta temporada inicial ainda é o homem da classe trabalhadora que tenta se virar para dar conta da família.
“Neste momento, é daqueles caras que têm dois, três trabalhos, não folga no fim de semana, só para colocar comida na mesa para os filhos. Charles é um homem muito influenciado pela igreja, fiel à mulher e a Deus. É músico também, mas não bebe nem fuma, e tenta criar os filhos à sua maneira”, afirma Hornsby.
Já no episódio inicial os conflitos paternos são grandes, principalmente com Meech, o mais velho e visto como forte influência para Terry, então ainda um jovem estudante. “Na superfície, a história parece ser sobre a cultura da droga, mas, na verdade, é sobre uma família da Detroit dos anos 1980. Tempos difíceis em que todos queriam ter uma vida melhor. É quase como se você olhar para ‘Cidade de Deus’. Aqueles garotos do filme encontraram um caminho para viver onde não havia caminhos, um contexto que não dava oportunidade de educação e crescimento para as pessoas. Para mim, o filme serve como um paralelo para ‘BMF’, só que em diferentes línguas”, afirma o ator.
“BMF”
A série, em oito episódios, estreia neste domingo (26/9), na Starzplay. Um novo episódio por domingo.