O último dia de setembro chegou trazendo consigo um grande acontecimento musical, que pode tranquilamente ser alocado entre os destaques do ano. Foi lançado na última quinta-feira (30/09), o novo disco de Juçara Marçal, “Delta Estácio blues”, que sucede à sua estreia em carreira solo com “Encarnado”, de 2014.
Em seu perfil no Instagram, a cantora e atriz postou que é um trabalho novo não apenas porque acabou de ser lançado, mas porque efetivamente apresenta elementos inéditos em sua trajetória, que passam pela sonoridade, pelas parcerias e, em suma, pela forma como foi feito.
Nesse mar revolto de arranjos intrincados e texturas sintéticas, a voz de Juçara singra com determinação e potência. “Delta Estácio blues” vem para confirmar seu lugar no panteão das grandes cantoras da atualidade, com um timbre inconfundível e uma versatilidade que a permite ir do canto-fala que evoca o rap e o funk em “Crash” até o lirismo expansivo de “La femme à barbe”.
“Delta Estácio blues” é um disco radicalmente urbano, com temáticas e mensagens que, assim como a sonoridade, são contundentes. Nisso colaboraram os parceiros de composição: Rodrigo Campos na faixa-título, Fernando Catatau em “Lembranças que guardei”, Negro Léo em “Sem cais”, Tulipa Ruiz em “Ladra”, Rodrigo Ogi em “Crash”, Maria Beraldo em “Baleia”, Douglas Germano em “Corpus Christi” e Siba em “Vi de relance a coroa”, que abre o disco e talvez seja a mais luminosa de todo o conjunto. Vale destacar que Dinucci também aparece como coautor em boa parte do repertório.
PARTICULARIDADES
O novo disco de Juçara é carregado de particularidades, mas não está totalmente dissociado do que seus pares mais próximos nessa prolífica cena paulistana fazem. Dinucci, Rodrigo Campos, Marcelo Cabral, Thiago França, Guilherme Held e Rômulo Fróes, seja em seus trabalhos individuais ou em grupo (Metá Metá, Passo Torto), têm, ao longo dos últimos anos, buscado caminhos mais sinuosos, algo distantes das estruturas harmônicas convencionais. “Delta Estácio blues” também faz essa opção por pisar terrenos desconhecidos e se lançar no assombro.
A letra da faixa-título, escrita por Rodrigo Campos, imagina um encontro do blues do Mississipi com o samba do Estácio por meio das figuras de Robert Johnson, por um lado, e o trio Bide, Baiaco e Ismael Silva, por outro. São cruzamentos da diáspora que também se revelam em outros momentos do repertório, de formas diferentes, quando, por exemplo, a invisibilidade das populações periféricas é tratada em “Crash”, que foi o primeiro single a ser lançado.
“Delta Estácio blues” é um álbum movido pelo desejo de invenção, o mesmo que está na origem do blues ou do samba, só que aplicado aos dias de hoje, tingido com as cores da realidade presente. Nesse sentido, é um trabalho que amalgama as possibilidades da música eletrônica com as matrizes da música africana, exploradas principalmente na faixa que encerra o álbum, “Iyalode mbé mbé”.
COLCHA DE RETALHOS
Com “Delta Estácio blues”, Juçara abre janelas e possibilidades. Não é um disco de audição fácil, pede entrega e atenção, mas é recompensador descobrir as nuances que entremeiam a colcha de retalhos sonora e a voz marcante da cantora. São possibilidades que levam a um outro lugar no que diz respeito ao jeito de se pensar e se fazer música, e que, felizmente, graças a artistas como Juçara, vai ganhando espaço nadando na direção contrária das fórmulas estabelecidas. No post do Instagram, Juçara diz que a peculiaridade de seu novo álbum também reflete o “fato de ter sido finalizado em meio à pandemia, com o isolamento social ditando a forma de se entender o mundo e continuar criando nele, ou apesar dele”.
“Delta Estácio blues”
• De Juçara Marçal
• 11 faixas
• Lançamento QTV selo / Natura Musical