Mario Prata nasceu há 75 anos, em Uberaba, no Triângulo mineiro. Foi criado em Lins, no Centro-Oeste de São Paulo. Ri quando é chamado de falso mineiro pela repórter. “Ascendência é o que importa. Minha mãe e pai eram mineiros, todas as férias até os 20 anos foram em Uberaba, onde estavam meus primos. Me considero mais paulista, mas essa coisa de contador de histórias vem dos meus tios, avós.”
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O recém-lançado “O drible da vaca” (Record) traduz exatamente isto. Fruto da pandemia, foi escrito ao longo de oito meses de 2020. Prata queria lançá-lo no ano passado para marcar seus 60 anos de carreira como escritor – estreou aos 14, no jornal “A Gazeta de Lins”. Como as editoras diminuíram consideravelmente seus lançamentos na primeira fase da pandemia, o romance ficou para este ano.
Apaixonado por futebol – é torcedor do Clube Atlético Linense, atualmente na segunda divisão do Campeonato Paulista –, um dia Prata se pegou perguntando o tamanho da trave. Resposta do Google: 7,32 de comprimento por 2,44 de largura. O que mexeu com o escritor foi saber que estas também são as medidas do portão principal da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Pronto, esta seria a gênese de uma história ficcional (com bases no real) sobre a origem do futebol.
PESQUISA
Deu a largada para uma pesquisa que consumiu três anos. Prata, que só esteve em Londres uma vez, em 1978 – “Fiquei com medo de atravessar a rua por causa da mão inglesa e saí correndo” – pegou-se estudando a fundo a Inglaterra vitoriana. “Descobri que havia uma rivalidade muito grande entre Cambridge e Oxford, inclusive que o filho da rainha (Vitória, o futuro monarca Eduardo VII), havia sido expulso de Oxford. Mas até aí, nada de futebol.”A pesquisa foi apresentando a ele histórias que desconhecia. Como a Inglaterra de meados do século 19 vivia num período de pós-pandemia (de cólera); como o metrô surgiu por perfurarem o solo de Londres para atingir os esgotos e desinfectar o Tâmisa. Novos personagens reais foram surgindo, como a sufragista Sarah Emily Davies e os atores Marlene Dietrich e Charles Laughton (o livro traz, na parte final, uma galeria com os principais personagens, reais ou não, que passeiam pela história).
O romance acompanha o começo do futebol, em 1859, e vai até meados da década seguinte, quando foi iniciada a profissionalização do esporte. “O autor é o Watson, eu só traduzi e fiz as notas de rodapé”, brinca Prata. Como narrador de “O drible da vaca”, ele escolheu o mais célebre dos coadjuvantes da ficção. “Esse cara passou a vida toda sendo explorado pelo Sherlock e contando as histórias dele”, acrescenta Prata, que colocou o médico perdendo a virgindade, aos 25 anos, com Sarah Emily Davies.
BAIRRISMO
Nesta jornada, Prata permitiu-se até certo bairrismo. Acrescentou à trama a família Silver, três irmãos que Watson observa chutando uma bola feita de bexiga de boi e pano na porta de entrada da Universidade de Cambridge. “Praticamente quem criou o futebol foi a família Prata do Triângulo Mineiro”, comenta, bem-humorado.“Embora muita coisa pareça ficção, tem muita coisa real. Quem inventou a bola de hexágonos e pentágonos foi mesmo Leonardo da Vinci. Embora alguém possa não acreditar, o desenho original está no museu (que leva o nome do gênio renascentista) de Florença”, diz. É um desenho desta bola, aliás, que figura na primeira página de “O drible da vaca”.
Prata chega aos 75 de vida e 61 de carreira com cerca de 90 títulos, entre trabalhos para literatura, teatro, televisão, jornalismo e cinema. Quando começou, admite, não pensava na escrita como um ofício. “Escritor, na minha época, era coisa que funcionários públicos faziam quando chegavam em casa”, diz ele, citando novamente outro mineiro, o mais célebre deles, Carlos Drummond de Andrade.
No final dos anos 1960, o garoto que chegou a São Paulo vindo de Lins parecia estar com o futuro assegurado. Era um partidão, para usar um termo da época. Estudante de Economia da Universidade de São Paulo (USP), estava empregado no Banco do Brasil. Poderia chegar a gerente, o sonho de boa parte das famílias de classe média do período. Mas eram os tempos da ditadura militar, e Prata acabou se descobrindo em meio à repressão.
UNIVERSIDADE
Em 1968, no momento pré-AI-5 (Ato Institucional No. 5, decretado em 13 de dezembro daquele ano, que deu início ao período mais duro da ditadura), os universitários ocupavam as faculdades. Comiam e dormiam no campus e, sem ter muito mais o que fazer, muitos deles se tornaram seguranças. Entre 1968 e 1969, um grupo de extrema-direita, Comando de Caça aos Comunistas (CCC), passou a atacar teatros, jornais, bancas de revistas.“Fomos convocados para fazer segurança para teatro. Quando terminavam os espetáculos, nós pulávamos no palco com uma barra na mão na frente do público. O elenco ficava atrás da gente para os aplausos”, lembra ele, um magrelo que não tinha lá o menor porte para a função. Uma coisa foi levando a outra e, entre noitadas no restaurante Gigetto, a casa dos artistas paulistanos da época, Prata começou a se envolver com atores, diretores, cenógrafos.
Desde sempre bom de histórias, publicou um livrinho mimeografado na universidade e começou a vendê-lo nos restaurantes e bares que frequentava depois dos espetáculos. “Seu diálogo é muito bom, por que não escreve?”, sugeriram alguns colegas da época. E daí, mesmo sem conhecer Molière ou Shakespeare, chegou à peça “O cordão umbilical”.
Desistiu da faculdade e do Banco do Brasil, para total desgosto da família que havia ficado em Lins. “Meu pai enlouqueceu, mandou um tio padre de Uberaba até São Paulo para tentar tirar o diabo do meu corpo”, relembra. O exorcismo, obviamente, não deu certo. “Tive muita sorte, pois sete anos depois esse tresloucado aqui estava escrevendo novela das sete da Globo (“Estúpido cupido”, 1976).”
NOVELA
A primeira novela lhe valeu uma história deliciosa com Caetano Veloso. “Estava num bar com a minha mulher (a escritora e jornalista Marta Góes, mãe de seus dois primeiros filhos, o escritor e cronista Antonio Prata e a jornalista Maria Prata) e o Caetano, da rua, me viu. Entrou no bar e disse que não perdia um capítulo de ‘Estúpido cupido’. A Marta ficou embasbacada, me perguntou como é que eu estava me sentindo, 10 anos depois de ter saído de Lins, e ouvido as coisas que Caetano falou. Eu disse: ‘Há 10 anos ele estava saindo de Santo Amaro da Purificação. Então a gente está na mesma’”, conta Prata.Mesmo que tenha tido sorte, talento tampouco faltou em sua trajetória. “A ditadura militar, para os criadores, escritores, músicos, pintores, a classe artística em geral, foi um período muito forte, pois todos se rebelaram. Eu me orgulho de ter feito parte, ainda que minimamente, não estou me comparando a Chico ou Caetano, desta geração. Hoje, só vejo gente rindo desse louco, mas ninguém está fazendo nada”, conclui.
“O DRIBLE DA VACA”
• Mario Prata
• (Record, 384 páginas)
• R$ 49,90 (livro) e
• R$ 34,90 (e-book)