Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Escritor argentino constrói romance sobre o amor na era do Tinder


Um dos mais poderosos nomes da moderna literatura argentina, Patricio Pron se tornou conhecido por utilizar a ficção ao tratar de temas espinhosos da história de seu país, como o período da ditadura militar – em “O espírito dos meus pais continua a subir na chuva”, lançado aqui pela Todavia, em 2018, ele promove uma reflexão sobre o passado sombrio da Argentina, especificamente entre 1976 e 1981, período marcado por inúmeros assassinatos e desaparecimentos. Como peças de um macabro quebra-cabeça, os fatos são revelados por Pron como uma narrativa policial.





Agora, em “Amanhã teremos outros nomes”, recém-lançado no Brasil, Pron, de 45 anos, se desassocia da trama autobiográfica para, ainda na ficção, criar uma rede de histórias elaboradas a partir de experiências de amigos e conhecidos, principalmente aqueles que usam aplicativos para encontrar um parceiro. 

A partir de dois personagens, chamados apenas Ele e Ela, que se separam após cinco anos de relacionamento, Pron investiga o novo cenário de práticas amorosas, os mecanismos e as redes que fazem do desejo um produto de compra e venda e a mudança na moralidade e na conceituação das relações. 

Para escrever o livro, o autor buscou atualizar a experiência amorosa que o leitor normalmente encontra na literatura. Durante a preparação do romance, Pron se apoiou em uma extensa documentação, especialmente sobre estatísticas relacionadas com o consumo de pornografia, usos específicos das redes sociais e de plataformas como o Tinder (plataforma de localização de pessoas para relacionamentos on-line) e as taxas de natalidade e solidão.





Fez também um trabalho de campo, que envolveu tanto a conversa com amigos usuários que utilizam redes sociais nos relacionamentos como uma medida prática: ele criou um perfil no Tinder, mas a medida não trouxe muita utilidade na busca de informações.

Logo no início, Pron iniciou contato com uma garota, mas se apressou em se apresentar como escritor, além de dizer que era casado e, na verdade, estava buscando informações para um futuro romance. Com isso, a moça não prosseguiu com a conversa – na verdade, boa parte das respostas nos contatos seguintes foi marcada pela mesma atitude e algumas mulheres chegaram a reclamar da presença de Pron aos responsáveis pelo aplicativo de namoro.

Por e-mail, ele respondeu às perguntas a seguir.

Para alguns, apaixonar-se é um negócio, porque existe uma troca (de sentimentos, no caso). Assim, em que medida o contexto político e social condiciona de fato os laços de amor?
Nem todas as trocas são um negócio, acredito. E apaixonar-se, então, não me parece mesmo, exceto que pensamos em nós mesmos como uma mercadoria que se alienou para obter outra, que seria a pessoa que amamos – e, nesse caso, não poderíamos realmente falar de uma troca, já que a "mercadoria" que somos não se torna propriedade de outra pessoa, e essa pessoa também não nos pertence... Mas eu acredito que o quadro político e econômico (e tecnológico, que pertence às duas categorias anteriores) condiciona completamente as relações amorosas, dificultando-as, tornando-as possíveis ou simplesmente impossibilitando-as de imaginá-las, como aconteceu durante décadas com as relações amorosas entre pessoas do mesmo sexo. Nosso tempo (que, em certo sentido, é pós-econômico, pós-político, um grande momento para encerramentos) prefere que as relações entre as pessoas sejam fluidas, precárias, limitadas à prestação de um serviço, não vinculativas, otimizáveis, efêmeras. E era previsível que essa preferência acabasse sendo transferida para o reino das relações amorosas. O que podemos encontrar lá, agora, é o mesmo que temos no mercado de trabalho e na economia: incerteza e precariedade.





Como é se apaixonar em um contexto de fragilidade sentimental como uma pandemia?
A pandemia acelerou a tomada de decisões do tipo "devo me mudar pra casa da pessoa que amo ou devo deixá-la?". Mas, em geral, acho que a pandemia apressou tendências que já podiam ser observadas antes de seu início, como a enorme saudade que sentem os personagens de “Amanhã teremos outros nomes”, uma saudade tão grande que nem sequer sabem o que é e como se expressa. E a pandemia também serviu para ampliar ainda mais as diferenças na forma de conceber as relações amorosas que existem entre as gerações anteriores e a nossa: simplesmente, depois de um evento como o que estamos vivenciando (e como aconteceu depois das duas guerras mundiais ou da eclosão da Aids), as ideias de intimidade, corpo, parceiro e casa não podem ser as mesmas. Não será mais possível amar como nossos pais e avós amaram. Mas isso, nostalgia à parte, pode não ser de todo ruim.

Como movimentos sociais (como #MeToo e outros) transformaram a maneira de ver as relações humanas?
Eles os transformaram radicalmente, acredito. E, embora obviamente tenham dado origem a fenômenos de histeria em massa e exageros grosseiros por parte de alguns e de outros, eles serviram para nos lembrar, por um lado, que todos nós temos limites que não queremos que sejam ultrapassados, e que outros também os têm, e devemos aceitar que é assim. Por outro lado, o que esse tipo de movimento revela, sem querer, é que as relações humanas não existem sem um certo grau de assimetria: há sempre alguém que ganha mais dinheiro, ou está mais bem posicionado, ou simplesmente goza de privilégios que lhe outorgam seu gênero ou raça – isso é algo que devemos levar em consideração, não para então acreditar que só são válidos os relacionamentos em que essa assimetria não existe, mas para pensar nos relacionamentos amorosos como mais um aspecto da sociedade em que vivemos e, assim, acabamos com as fantasias hollywoodianas de acaso e amor altruísta que tanto prejudicam algumas pessoas quando não são realizadas.

Você acredita que o futuro do amor está em nossos telefones celulares e nos algoritmos?
Temo que todos os aspectos de nossa vida atual (e, em maior medida, no futuro), desde nossas relações amorosas aos empregos que teremos, além do que pensaremos sobre direitos humanos e a legitimidade política de algumas causas ou outras, até mesmo nossa percepção da realidade, enfim, tudo está determinado por algoritmos. Assim, a luta política dos próximos anos será marcada pelo resgate de uma soberania individual e de uma compreensão do tempo e do mundo que nos rodeia e que perdemos nas mãos das telas.





A tecnologia é algo que você teme ou comemora? Ou ambos?
“Amanhã teremos outros nomes” não é um romance moralista. Nenhuma das tecnologias que existiram até agora foi apenas virtuosa ou prejudicial: quase todas tiveram duas ou mais faces, e as mais novas não são exceção. Meus personagens e eu somos muito realistas nesse sentido: trabalham com o que existe, buscam uns aos outros, mas não se divertem com juízos morais. Eles preferem ter novas ideias para novos tempos.

Um dos momentos mais interessantes do romance é quando Ele se pergunta o que é um homem, e Ela o que é uma mulher. Vivemos um período histórico em que não existem muitas certezas em torno dessa questão?
Sim, felizmente, estamos revisando esses tópicos, especialmente o que é um homem, quanto dano ele fez e causa a muitas mulheres e também a homens. De repente, surgem novas categorias que vão além do binário, mas também além da ideia de que identidade não é algo que pode ser imposto. Mas meus personagens têm pouco interesse em mudar uma taxonomia anterior por outra, e eles pensam (eu também) que o que chamamos de "homem" ou "mulher" ou "homossexual" são partes de uma grande sequência que percorremos ao longo de nossa vida, ocupando as posições que desejamos, enquanto estivermos interessados em fazê-lo.

A amargura e o tédio são os grandes males contemporâneos? Por que vivemos tempos tão angustiantes?
Porque vivemos uma época de grandes finais: a selva arde, velhas religiões são substituídas por novas religiões e, portanto, potencialmente mais nocivas; o trabalho como o concebemos foi substituído pela gamificação de tarefas com as quais não nos identificamos nem entendemos plenamente. E a nostalgia de um passado que tendemos a idealizar lança muitas pessoas nos braços de um novo fascismo. Não sei como poderíamos viver sem angústia, mas sei que essa angústia é política e que temos que fazer política a partir dela e para ela, para que surjam novas formas de viver conosco e com o mundo físico que nos rodeia.





Essa nova forma de relacionamento humano (com bate-papo, redes sociais e conversas por e-mail) pede uma nova linguagem literária?
A verdade é que desconfio um pouco da ideia de que esse tipo de tagarelice incessante que praticamos nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens instantâneas não seja um tipo específico de literatura. E os personagens neste romance também veem isso, por exemplo, quando criam poemas dadaístas com as mensagens sujas e ofensivas enviadas por homens em aplicativos semelhantes ao Tinder. Não é uma boa literatura, mas é a que corresponde a uma época que também não é boa. E temos de abrir os olhos e pensar em todas essas coisas porque o tempo está se esgotando. Infelizmente, não nos resta muito antes de finalmente termos de falar seriamente sobre esses assuntos. (Agência Estado)

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