No final de 1993, foi lançada a cédula de 500 mil cruzeiros (R$ 181). De vida curta, circulou até setembro do ano seguinte. Mas, na época de seu lançamento, era a mais almejada, pois era a de maior valor em circulação no país.
Um dia, saindo de seu prédio em São Paulo, Pascoal da Conceição foi abordado pelo porteiro: “Tem uma foto sua no jornal”. O ator foi lá verificar e descobriu a fotografia da cédula, que trazia estampada uma imagem do poeta, romancista, musicólogo, historiador e crítico Mário de Andrade (1893-1945).
Para além do sarro que o porteiro havia tirado dele, Pascoal tinha lá que concordar: eram muito parecidos. Uns anos antes, na década de 1980, ele se recordava, havia lido alguns poemas de Mário. Mas, até então, nunca tinha realmente atentado para o fato da semelhança entre eles.
Dez anos mais tarde, o ator recebeu um telefonema do diretor Ulysses Cruz. A Rede Globo estava preparando uma minissérie histórica para celebrar os 450 anos de São Paulo (em 2004), e ele o estava convidando para viver Mário de Andrade em “Um só coração”.
PESQUISA
Uma coisa é viver um personagem, Pascoal já tinha interpretado vários. Outra era viver uma figura real, brilhante, de enorme influência na cultura brasileira. Para entrar na empreitada (que lhe abriu um leque de opções, pois desde então já viveu Mário em vários projetos diferentes), o ator tinha que estudar a fundo a vida e a obra dele. E já no início da pesquisa descobriu uma coincidência: ambos haviam nascido em São Paulo em 9 de outubro – só que com 60 anos de diferença.É neste 9 de outubro, que marca os 68 anos de nascimento de Pascoal e os 128 de Mário, que o ator dá início a uma nova empreitada em torno do escritor. “Mário de Andrade desce aos infernos” se desdobra em espetáculo, websérie e ciclo de conferências. A temporada que começa neste sábado se estende até novembro, nos canais digitais de vários teatros paulistanos – é tudo gratuito e on-line.
TEMPORADA
Gravado no Teatro Oficina (onde ele atuou por vários anos), o espetáculo apresenta Pascoal interpretando textos de Mário em poesia, prosa, conferência e crônica. A temporada antecipa as comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna, ocorrida no Theatro Municipal de São Paulo, em fevereiro de 1922. Com Mário como uma das figuras de frente, o evento marcou o início do modernismo no Brasil.“‘Mário de Andrade desce aos infernos’ é resultado de tudo o que tenho lido desde que vi como era parecido com ele. Sou um ator, um atleta das emoções, e tento trazer para a contemporaneidade tudo o que ele falou. Não falta em revista, literatura e museu a obra de Mário. Embora sejam muito interessantes, tais coisas estão prontas. O que me interessa é o que há de vir a partir do que ele propõe”, afirma Pascoal.
A versão on-line do projeto é uma evolução do espetáculo solo de mesmo nome que o ator criou há 15 anos. O título “Mário de Andrade desce aos infernos” foi tirado do poema homônimo que Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) escreveu quando foi surpreendido pela morte de Mário, de infarto, aos 51 anos, em 25 de fevereiro de 1945.
“Daqui a vinte anos, farei teu poema/e te cantarei com tal suspiro/que as flores pasmarão, e as abelhas,/confundidas, esvairão seu mel”, escreveu o poeta mineiro em homenagem ao paulistano, com quem manteve uma relação de amizade iniciada na juventude e que se estendeu durante toda a vida.
A relação entre os dois poetas foi traduzida em dezenas de cartas trocadas entre 1924 e 1945, material que pode ser encontrado em dois livros: “Carlos & Mário” (2002, Bem-Te-Vi) e “A lição do amigo” (2015, Cia. das Letras).
Nos estudos que empreendeu em torno da personagem histórica, o ator descobriu a fisicalidade que o texto de Mário exige. “A Semana de Arte Moderna aconteceu em um teatro. Os escritores falaram seus textos em público, na escadaria do Municipal. Havia uma performance, uma ‘musculatura’ ali. Inclusive, Mário fala no ‘Paulicéia desvairada’ (1922, marco da poesia modernista brasileira, introduziu o uso livre da métrica) que quem não soubesse gritar, rosnar não saberia ler os poemas dele.”
CLÁSSICOS
Outros trabalhos relidos pelo ator no espetáculo são o clássico “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter” (1928) e “Meditação sobre o Tietê” (1945), último dos poemas escritos por Mário, que traz referências ao meio-ambiente e à política.Pascoal não mudou uma vírgula dos textos originais. Mas acredita que o Brasil de hoje pode refletir sobre escritos de um século atrás. “A Semana de Arte Moderna não é um marco inicial, pelo contrário, acaba sendo um alto-falante daquele momento. O que a antecede é um Brasil ainda escravista, em dúvida sobre a democracia, e uma pandemia (a gripe espanhola).” Ele observa que o centenário da Semana de 22 vai encontrar novamente um país mal resolvido enfrentando várias questões urgentes.
Desde a sua realização, que reuniu intelectuais e artistas como Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Menotti Del Picchia, Heitor Villa-Lobos, Victor Brecheret e Di Cavalcanti, a Semana de 22 – que em sua época rompeu com os padrões europeus, que dominavam a produção nacional, dando início à construção de uma cultura assumidamente brasileira – é celebrada de tempos em tempos.
O próprio Mário de Andrade, em 1942, quando dos 20 anos do evento paulistano, apresentou, no Ministério das Relações Exteriores, no Rio de Janeiro, a conferência “Movimento modernista”. No longo texto, seu autor afirmou que o Modernismo trouxe para o país a “fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira, e a estabilização de uma consciência criadora nacional”. A novidade, segundo ele, foi a união das três normas que criaram uma “consciência coletiva”.
Na última semana deste mês, haverá uma oficina para leitura da conferência com grupos de teatro convidados por Pascoal: Os Crespos e as companhias Próxima, Dolores e Refinaria. Encerrando o ciclo, que será transmitido ao vivo, será realizada a palestra de Marcos Antonio de Moraes, professor de literatura brasileira que realizou mestrado e doutorado em torno da obra de Mário de Andrade.
“MÁRIO DE ANDRADE DESCE AOS INFERNOS”
Espetáculo on-line interpretado e dirigido por Pascoal da Conceição. Estreia neste sábado (9/10), às 21h, nos canais do YouTube e do Facebook do Teatro Arthur Azevedo (reprise domingo, 10/10, às 19h). Outras transmissões, também nas redes sociais dos respectivos teatros: 15 e 16/10, 21h; e 17/10, 19h, no Teatro Alfredo Mesquita; 22 e 23/10, 21h; e 24/10, às 19h, no Teatro Cacilda Becker; 29 e 30/10, 21h; e 31/10, às 19h, no Teatro João Caetano; 5 e 6/11, 21h; e 7/11, às 19h, no Teatro Paulo Eiró (este somente Facebook). Em formato de websérie, com nove episódios, o espetáculo será apresentado de 10 a 22/10, às 11h e às 21h, no YouTube (youtube.com/PascoaldaConceição1). De 25 a 29/10, às 16h, no mesmo canal, será realizada oficina de leitura da conferência “O movimento modernista” com grupos teatrais de São Paulo