Você pensa em mudar de vida diante desta traumática pandemia? Beatriz, personagem de “A lua no terreiro” (Penalux), livro da jornalista Maria Dolores, criou coragem e chutou o balde, como se diz. Mudou-se com os dois filhos pequenos para um sítio no interior de Minas Gerais, abandonou a bem-sucedida carreira de executiva, trocou o apartamento em São Paulo pelo mundo idílico (mas nem tanto) das casas de tábuas corridas, fogões a lenha, galinheiros e tachos de goiabada.
Péssima cozinheira e mais afeita a “startups unicórnio”, aprendeu a fazer pão de queijo. Mãe protocolar, aproximou-se das crianças. Workaholic convicta, a ponto de sacrificar um casamento estável em prol da carreira, passou a varrer, lavar banheiro e fazer a sesta. Quarentona recém-divorciada, finalmente compreende que é totalmente responsável por tudo o que deu errado em sua vida.
CAOS
“A pandemia atingiu todo mundo, mas foi um caos para as mulheres. Principalmente, ouso dizer, para aquelas que trabalhavam fora e tinham filhos em idades que demandam cuidado”, afirma Maria Dolores. “Uma coisa é home office em tempos normais. Bem diferente é ter que trabalhar em casa com as crianças, lidando com as demandas do trabalho, dos filhos, da casa, a estressante aula on-line. Tudo isso sem colocar o pé na rua. É completamente exaustivo.”
Nesta era do “novo normal”, a Beatriz do romance fica desnorteada ao estabelecer outra relação com o tempo. Maria Dolores confessa: também não soube o que fazer com ele. “Era tanto tempo disponível que eu nem conseguia acreditar.”
A autora mineira não se incomodou em escrever sua história no calor deste momento mundial impactante, enquanto outros autores defendem o distanciamento, recusando o desafio de criar em meio ao “aqui e agora”.
“Tinha lançado dois livros e colaborei por muito tempo para jornais e revistas, mas depois acabei seguindo pela área de produção cultural. Deixei de lado a escrita. Com a pandemia, voltei a escrever. Primeiro, crônicas que mandava para a família. Quanto mais escrevia, mais eu me divertia”, revela.
Até o coronavírus chegar, Maria Dolores organizava eventos em várias regiões do Brasil. Em março de 2020, preparava quatro concertos de Zezé Di Camargo e Luciano com orquestra, festival de blues e jazz em oito capitais e um encontro de música e gastronomia. “Tudo parou”, relembra.
O novo romance surgiu num dia prosaico – sentada, descascando laranja, pensando na vida e nos desafios da pandemia, achou que aquelas reflexões dariam um livro.
“Não queria analisar, só queria contar uma história”, diz a autora de “Travessia – A vida de Milton Nascimento” (Record), biografia lançada em 2006, e do volume de crônicas “Mãe de dois” (Civilização Brasileira, 2011), que reúne textos de seu blog.
Depois de quase enlouquecer ao se ver confinada com os três filhos e o marido num apartamento pequeno em São Paulo, ela “chutou o balde”, assim como Beatriz. “Fui com a família para o interior, no Sul de Minas, em busca do tão almejado 'lado de fora'. Esse movimento, essa fuga, e a consequente descoberta do novo me fizeram sentir vontade de escrever”, revela.
“Quando a gente muda tudo de uma hora para outra, geralmente motivada por um fator externo maior como a pandemia, janelas antes fechadas se abrem. A mudança é oportunidade para repensar a vida, as prioridades”, observa Maria Dolores.
AMOR
Um núcleo da trama de “A lua no terreiro” é formada por Beatriz, o ex-marido e os dois filhos. O outro eixo aborda a história de Mundinho e Domingos, idosos que vivem um amor proibido.
“Sempre me encantei pelas pessoas mais velhas. Desde pequena. Tenho muitos amigos acima dos 70 anos, meu melhor amigo tem 82. Queria trazer um pouco desse universo”, revela Maria Dolores.
“Nossa sociedade dá muito pouco valor aos idosos, deveria ser o contrário. Eles não são peças de museu, têm histórias de vida incríveis. Têm muito a nos ensinar, podem ser excelentes e divertidas companhias. Um dos personagens foi, em parte, inspirado em um tio tataravô meu muito querido.”
Inicialmente, Mundinho e Domingos eram só bons amigos. “Engraçado como os personagens vão criando vida e seu próprio caminho, sem a gente ter pensado naquilo. Ao fazer essa mudança, lembrei-me das várias histórias que ouvi das pessoas mais velhas, sobre tudo o que queriam ter sido e não foram, os sonhos não realizados, amores proibidos, o preconceito experimentado em silêncio, os tabus em relação à sexualidade”, diz.
Depois de contar a história de Beatriz, Mundinho e Domingos, Maria Dolores já pensa em novo romance. Na verdade, virou “workaholic pandêmica”. “Num dia de desespero por ficar só cuidando de casa, criança e trabalho, me matriculei na pós-graduação e estou terminando, embora antes nunca quisesse fazer pós-graduação. Fiquei quase seis meses num sítio, eu que nunca gostei do campo, e temos ido sempre para lá. Arrumamos dois cachorros, mas nunca quis ter cachorro”, enumera.
Não acabou: depois de 15 anos parada, Beatriz, digo, Maria Dolores, voltou a fazer atividades físicas. E ainda deu tempo de concluir o livro caseiro de memórias de infância para dar de presente à família no Natal.
“A LUA NO TERREIRO”
Romance de Maria Dolores
Penalux
234 páginas
R$ 44 e R$ 9,90 (e-book)
Informações: www.editorapenalux.com.br/loja/a-lua-no-terreiro