Jornal Estado de Minas

LANÇAMENTO

Livro conta a história da MPB (e a do Brasil) em 100 fotografias

Flagrante de Chico Buarque cercado por fãs na sessão de autógrafo de seu primeiro álbum feito por fotógrafo não identificado, prática que foi comum sobretudo dos anos 1920 aos 1950
A parceria entre a editora Bazar do Tempo, comandada por Ana Cecília Impellizieri Martins, o Projeto República, da UFMG, capitaneado por Heloísa Starling, e os jornalistas, críticos e pesquisadores Hugo Sukman e Rodrigo Alzuguir resultou, ao fim de mais de dois anos de trabalho, no recém-lançado livro “História da música brasileira em 100 fotografias”.





Trata-se de um trabalho de fôlego, que traz à tona fatos e personagens da música brasileira relativos a um período que parte da segunda metade do século 19 e chega até os dias atuais. A obra joga luz, também, sobre nomes importantes da fotografia no país e, no bojo, contribui para contar a própria história do Brasil.

As tais 100 fotografias a que o título se refere foram escolhidas por Sukman e Alzuguir. Para cada uma foram escritos verbetes, pelos dois curadores, por especialistas convidados e por parte da equipe do Projeto República. Nem todas as imagens tiveram os autores identificados, por uma carência mesmo de registro, no caso das mais antigas, mas o livro traz, também, pequenas biografias dos fotógrafos creditados.


DOCUMENTOS 

“A ideia que rege esse projeto é fazer o cruzamento entre história e fotografia, com as imagens lidas como documentos que nos contam a história do país. Ao mesmo tempo, a gente também reforça ou constrói a história de tudo o que está ligado à fotografia e aos fotógrafos”, diz Ana Cecília.





Ela observa que, entre os anos 1920 até meados dos anos 1950, a imprensa não creditava os fotógrafos, o que explica algumas lacunas. Na opinião da editora, ao mergulhar nos acervos de fotógrafos e instituições públicas e privadas, a pesquisa cumpre a função de valorizar e colocar na história alguns nomes importantes da fotografia feita no Brasil.

“Esse livro é fruto de um entendimento que a gente tem – e o Projeto República, da Heloísa, também enxerga assim –, de que a música brasileira é muito eloquente para falar da nossa história, ela serve como comentário sobre fatos da vida brasileira”, afirma a editora. 

Ela cita como exemplos a música de protesto, que dialoga diretamente com os acontecimentos do Brasil durante a ditadura militar, nos anos 1960 e 1070, ou a chegada de Luiz Gonzaga ao Sudeste, a partir de quando o Brasil se abre para a produção cultural de uma região que estava fora do mapa do show business.





Heloísa Starling explica que o Projeto República pesquisa a canção popular brasileira há 20 anos, por isso a parceria com a Bazar do Tempo foi “juntar a fome com a vontade de comer”. A historiadora diz que se trata de enxergar a canção como um dos recursos possíveis para se compreender o país. 

A emergência do Clube da Esquina no cenário mineiro e nacional também é tema do livro, cujos verbetes se referem às respectivas imagens, assim como a seus autores

ANDAIMES 

“É exatamente essa a linha de pesquisa do Projeto República: como o compositor popular é um intérprete do Brasil? Como ele narra o Brasil e como narra o que significa ser brasileiro? O projeto resulta de uma pesquisa grande, porque tínhamos que pensar cada recorte que os curadores nos enviavam. A gente contribuiu com a pesquisa histórica, levantando andaimes para os autores dos verbetes construírem o texto”, conta.

Ana Cecília diz que toda a equipe envolvida na realização do livro buscou uma seleção que fosse representativa de vários aspectos, tanto da fotografia quanto dos personagens e cenas fotografados, o que abrange a questão geográfica, os diferentes estilos musicais e a representatividade de gênero. 





“Construímos uma cronologia e buscamos identificar quais eram os momentos mais importantes e o que a gente tinha que dar conta em termos de gênero musical, de personagens e de temáticas”, diz, acrescentando que foi uma empreitada laboriosa. 

“Os verbetes para cada fotografia são textos não muito grandes, então teve, ainda, o desafio de fazer caber ali a história do tema, seja o artista ou o episódio, e toda a contextualização, além de também falar algo sobre a imagem, a leitura sobre ela, o porquê de a gente ter escolhido uma e não outra, porque não são aleatórias. Não basta ter uma imagem do Chico Buarque, tem que ter uma imagem do Chico que represente um evento importante na trajetória dele e para o Brasil. Em muitos casos, a gente mudou a foto, porque a pesquisa seguia adiante e, de repente, aparecia uma imagem que dizia mais sobre o tema”, diz a editora.

DESAFIO 

Sukman afirma que coube a ele e a Alzuguir fazer a seleção das 100 fotos, o que foi desafiador, porque, conforme diz, ambos são profissionais do texto – terreno em que, afinal, também puderam pisar, já que, juntos, eles assinam 30 dos 100 verbetes. 





“A decisão foi pela imagem, antes de tudo. Eu e Rodrigo somos jornalistas, pesquisadores, escrevemos livros, então somos do texto, mas tivemos que nos disciplinar para essa função de selecionar imagens que contivessem uma história e que fossem representativas de um tempo, de um movimento, de uma biografia. Foi isso que norteou a gente, pensar no valor da imagem como fotografia e como documento”, comenta.

Ele cita como exemplo a bossa nova, cujos personagens e episódios relacionados foram amplamente registrados em imagens. A foto escolhida para comentar o movimento, feita por Indalécio Wanderley, flagra Ary Barroso, Tom Jobim, Ronaldo Bôscoli e Carlos Lyra sentados em uma escada na casa do pianista Bené Nunes, num encontro promovido pela revista “O Cruzeiro”.

“A gente poderia escolher milhões de fotos da bossa nova, mas essa foto é impressionante. É uma foto inusitada, com os personagens corretos, e que, por meio dela, a gente consegue contar a história da bossa nova. Nessa imagem, o Ary Barroso, que era o grande compositor brasileiro da época, abençoava aquela nova geração. E, diferentemente do samba, a bossa nova foi criada na sala da casa das pessoas. Essa foto é uma história. São vários critérios, mas o primordial é o encantamento que a imagem provoca. A partir daí você faz a leitura do que está dito nela.”





Outro exemplo que ele cita é o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro no carnaval de 1969. A imagem escolhida, de autoria de Ricardo Beliel, é da ala das baianas da Império Serrano. “Por que a gente escolheu essa foto? Porque ela é linda, uma foto em preto e branco com luz perfeita. E por que a Império Serrano? Porque naquele ano a escola levou para a avenida o enredo ‘Heróis da liberdade’, no desfile que aconteceu dois meses depois da decretação do AI-5. A Império deu um nó na ditadura, desfilou um enredo pedindo a volta da liberdade, mas quem pede não é a Império, é Tiradentes, então era um desfile incensurável. O que é bonito desse livro é isso, você pega uma foto maravilhosa, quase abstrata, mas que permite contar a história daquele que talvez tenha sido o desfile mais importante e emblemático de todos os tempos”, diz.

PONTE 

Imagem de 1865 que mostra dois negros escravizados tocando tambor abre o livro, numa referência às matrizes da música brasileira 

Sukman destaca, ainda, os diálogos que as imagens estabelecem entre si. Uma foto de Inezita Barroso, por exemplo, que começou a dar visibilidade para a música sertaneja nos anos 1950, estabelece uma ponte com a imagem de Chitãozinho e Xororó em estúdio, muitos anos depois, cercados de tecnologia.

“Da mesma forma, a gente pega Dorival Caymmi meio que posando de pescador em um barco, ele começando a tradição da música baiana, e isso se conecta com uma foto da Daniela Mercury, 40 anos depois, cantando para uma multidão no vão do Masp”, aponta.





A foto que abre o livro, a mais antiga, de 1865, feita por Cristiano Júnior, flagra dois negros escravizados tocando tambores. A segunda foto é de Carlos Gomes, “talvez nosso primeiro compositor moderno”, conforme destaca Sukman. A terceira foto é o registro de botocudos tocando flautas indígenas na beira do Rio Doce, no Espírito Santo. 

“Com esse início, a gente dá conta das matrizes. Depois vamos seguindo a história cronologicamente, tentando abarcar todos os movimentos da música brasileira”, diz. A estrutura cronológica do livro passa, então, por Catulo da Paixão Cearense, segue para a praça 11, no Rio de Janeiro, em 1915, na “Pequena África”, onde nasceu o samba, chega nos Oito Batutas, sai do eixo Rio-São Paulo e vai para Pernambuco, onde há o registro do frevo, com uma banda de pau e corda em ação. 

“Daí tem a Chiquinha Gonzaga, o Noel Rosa, uma foto maravilhosa do Mário de Andrade percorrendo o Brasil, feita pelo Lévi-Strauss, e mais Carmem Miranda, Villa-Lobos, os cantores do rádio, as primeiras escolas de samba, o trio elétrico na Bahia, o encontro de Tom e Vinícius, Lamartine Babo vestido de diabo num carnaval”, cita Sukman.





Ele salienta que essa linha se desenrola até os dias atuais, com uma imagem, por exemplo, que resulta de uma montagem em que aparecem Marcos Valle, Joyce Moreno e Ivan Lins, que, durante a pandemia, cada um de sua casa, gravaram uma música em parceria. “É uma foto dividida em três, uma reprodução da internet. Quer dizer, chegamos ao momento atual, da pandemia.”

No rol das atualidades aparecem, ainda, Marisa Monte fotografada por Leo Aversa, Caetano Veloso pelas lentes de Bob Wolfenson, os Titãs representando o rock brasileiro, os Racionais MCs como um símbolo da revolução das periferias, um baile funk no Rio de Janeiro e o retrato de Elza Soares, feito em 2015 por Steph Munnier, sob o título “Mulher do fim e do começo”, que fecha o livro.

“Esse livro traz uma maneira de entender o Brasil, mas o Brasil é maior do que um livro. Ele é um caminho, nós poderíamos fazer as mil canções, que seria outro caminho, mas é bom a gente ter em mente que essa obra é uma história possível do Brasil em 100 imagens relacionadas à música. O Brasil não cabe em um único livro. Uma coisa que sinto, que me dei conta na hora que vi o livro, é que ele fala de um Brasil que nós não reconhecemos hoje e que precisamos voltar a reconhecer”, diz Heloísa Starling, chamando a atenção para um trecho da apresentação.





Esse trecho diz: “É com um tanto de orgulho que se folheiam essas páginas, e que sentimos pulsando a força da nossa música, que também é a da nossa poesia, nossa lírica, nosso ritmo, nossa harmonia. Essa força que é a nossa cultura; o que somos, ao fim – ou deveríamos vir ou voltar a ser, quando for queimada, do mal, a semente, e o sol brilhar outra vez”.

"HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA EM 100 FOTOGRAFIAS"

Organização: Hugo Sukman e Rodrigo Alzuguir
Bazar do Tempo (304 págs.)
R$ 120 

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