“Tal pai, tal filho”; “Filho de peixe, peixinho é”; “O fruto nunca cai longe da árvore”. Essas são algumas das inúmeras expressões que descrevem as semelhanças entre pais e filhos. Mas como lidar com essa relação familiar na carreira profissional? É mais fácil ou mais difícil?
Três jovens mineiros que herdaram a vocação dos pais falaram à reportagem sobre os desafios de dar continuidade a uma linhagem artística e, ao mesmo tempo, construir um caminho próprio na profissão.
TRABALHO EM FAMÍLIA
Aos 19 anos, Bárbara Luz protagoniza o recém-lançado curta-metragem “A primeira perda da minha vida”, uma produção do Grupo Galpão, que tem direção assinada por sua mãe, Inês Peixoto, e roteiro escrito por seu pai, Eduardo Moreira, ambos fundadores da companhia teatral mineira.
A jovem atriz conta que cresceu dentro do Galpão, acompanhando ensaios, apresentações e bastidores. “Com três meses, eu estava fazendo minha primeira viagem de avião para acompanhá-los numa temporada de teatro”, diz Bárbara. “Eu sempre estive muito dentro do universo da fantasia, do teatro e dos diversos cenários que eles me apresentavam nas peças.”
Ela conta que desde pequena queria ser atriz e sempre teve vontade de participar dos espetáculos do Galpão, mas ficava chateada quando os pais viajavam a trabalho sem sua companhia. Inês Peixoto tentava compensar a frustração do período em que ficavam distantes trazendo lembranças para a filha, que, ainda assim, protestava: “Não quero presentes, quero vocês perto de mim”.
Aos 10 anos, Bárbara teve a primeira experiência profissional no filme “O menino no espelho” (2014), de Guilherme Fiuza. Aos 14, conquistou o papel de protagonista em “Unicórnio” (2017), de Eduardo Nunes. A experiência prática foi crucial para a sua decisão de se tornar atriz, ainda jovem. Segundo ela, não faltou apoio dos pais, que ficaram cheios de orgulho de presenciar a estreia da filha no cinema.
Bárbara Luz afirma não ter medo de ficar “na sombra” deles ao longo da carreira. A insegurança está mais ligada à realidade profissional de um artista no Brasil. “A gente vive em um país onde a arte está sendo cada vez mais desvalorizada. E eu também penso muito no futuro do teatro depois da pandemia. O que vai ser fazer teatro?”
Ela conta que gostou da experiência de ser dirigida por Inês Peixoto em “A primeira perda da minha vida”, sobretudo pela sensibilidade que sua mãe tem no trabalho de criação. O texto de Eduardo Moreira, que somente agora saiu da gaveta, tinha sido escrito para a filha quando Bárbara estava com 6 anos de idade. “Meu pai escreveu com muita delicadeza esse texto e ainda cabe muito em mim”, diz ela.
Segundo Bárbara, uma vantagem de trabalhar com os pais é que a convivência não fica restrita ao ambiente da filmagem. “Existe uma liberdade, porque a gente pode tomar o café da manhã conversando sobre o filme, trocando ideias, conselhos, pensando num tom. Acaba que o trabalho vira uma coisa mais cotidiana e, ao mesmo tempo, mais divertida.”
Para ela, a “troca” é a principal vantagem de seguir a profissão dos pais. “A gente escolheu amar a mesma coisa. E, ao mesmo tempo, a gente está vivendo para amar isso. Além de compartilhar o amor entre nós, a gente ainda compartilha um amor por outra coisa, que é o teatro.”
VANTAGEM DE APRENDER
O MC Imane Rane, filho do cantor, compositor e instrumentista Sérgio Pererê, lançou seu primeiro EP, “Gana”, em setembro passado, buscando conquistar o seu lugar na frutífera cena de rap belo-horizontina. A vocação musical vem do berço (e da casa inteira).
“Quando eu nasci, já estava todo mundo (da família) envolvido com a música. Então, nem me lembro de quando foi o meu primeiro contato com a música, porque, com certeza, foi quando eu era muito novo. Cresci vendo meu pai compondo, cantando, escutando música”, conta Imane Rane, de 18 anos.
A rotina de um músico profissional era vista com naturalidade por ele na infância. Imane costumava acompanhar Sérgio Pererê no estúdio e nos shows e notou cedo que na arte “nem tudo são flores”. “Desde sempre, aprendi que não era um mar de rosas, aquela coisa que aparecia na televisão. Eu percebi que era mais embaixo o buraco”, afirma.
Aos 8 anos, Imane começou a ganhar intimidade com o microfone, cantando ao lado do pai em alguns shows e gravações. No início, ele levava como uma “brincadeira”, mas, aos poucos, a música se tornou coisa séria para ele. A sua primeira letra de rap surgiu quando, certo dia, Sérgio Pererê escreveu um refrão e pediu para os filhos desenvolverem a canção.
“Cheguei a mostrar pra ele um rascunho, depois a gente gravou. A partir daí, ele foi sempre me apoiando a fazer as coisas”, conta o MC. Em seguida, eles fizeram parceria nos singles “Dourada”(2019) e “Minha história” (2021). Quando lançou o EP “Gana”, Imane já tinha certeza de que queria seguir a carreira musical. Seu pai foi uma motivação a mais para tomar essa decisão.
“Nunca foi uma preocupação minha ficar na sombra dele, até porque são características muito diferentes, tanto no timbre da voz quanto no estilo de música. São coisas distintas, então não estou fazendo nada parecido com a música dele”, afirma.
Além de rapper, Imane é produtor musical e beatmaker. “É uma área muito ampla. É a mesma do meu pai, mas não é o mesmo setor. Tem várias possibilidades.” Embora se veja num universo musical diferente do de seu pai, Imane dá ouvidos ao que Sérgio Pererê tem a dizer sobre sua carreira, que ele faz questão de acompanhar de perto, desde o nascimento das letras até os shows.
Segundo Imane, ele e o pai cultivam uma relação de mútuo respeito, sem interferir no trabalho um do outro. “Eu sempre vi que (a carreira musical) era uma coisa difícil, no sentido de se sustentar com isso. Ele sempre fez questão de mostrar que tinha as dificuldades desse meio, mas também nunca deixou de apoiar e instruir. Então, fui por um caminho que não era ilusório, pensando na fama, no sucesso, nessas coisas. É muito pé no chão e com tranquilidade, fazendo do jeito que eu acho que tem ser e fluindo.”
Para ele, o difícil não é seguir a carreira do pai, mas “fazer a arte por si só”. “Eu vejo como um ponto positivo (seguir a mesma profissão do pai). É uma questão de legado, sabe? Vejo como uma continuação do processo, algo tranquilo, porque é uma coisa que eu também gosto de fazer. Quando a gente tem alguém mais experiente para instruir é sempre uma vantagem.”
PRESSÃO EXTERNA
Lápis, papéis, tintas e desenhos fizeram parte da infância de Rafael Zavagli, filho dos artistas plásticos Mário Zavagli e Sandra Bianchi. Desde pequeno, ele acompanhava os pais em exposições, viagens profissionais, ateliês e aulas (os dois foram professores de belas-artes na UFMG). Sandra pintava retratos dos filhos, enquanto Mário os levava para fotografar paisagens que inspiraram obras suas. E, claro, os pais sempre incentivaram os filhos a exercer sua criatividade.
“Enquanto a gente era pequeno, sempre foi uma coisa meio lúdica. E levava para um lado de 'olha, como é legal a gente desenhar e criar’”, conta Rafael, de 40 anos. Ele só tomou a decisão de seguir a mesma carreira dos pais aos 45 minutos do segundo tempo. No momento de se inscrever para o vestibular de música, Rafael mudou de ideia e resolveu fazer belas- artes, sem perguntar a opinião dos pais. A escolha foi um processo natural, segundo diz.
“Não era um sonho de criança. Se eu falar que sempre quis ser (artista plástico), é mentira. Mas foi muito natural. Eu já gostava daquilo, era uma paixão minha, mas nunca tive certeza”, afirma. Ao comunicar aos pais sua decisão, ouviu deles uma reação bem-humorada por terem emplacado dois filhos no meio artístico. Sua irmã mais velha, Júlia, ingressou um ano antes no curso de belas-artes da UFMG.
“No dia em que eu me inscrevi em belas-artes, eles falaram: ‘Nossa, mais um artista, ai meu Deus’. Eles racharam de rir, mas foi ótimo”, relembra Rafael. Segundo ele, os pais sempre o incentivaram a seguir seus sonhos, seja na música ou nas artes plásticas. No entanto, na faculdade, ele sentiu a pressão de sua escolha. Havia grandes expectativas em relação à carreira do filho de dois artistas plásticos, grandes aquarelistas, que também lecionaram na universidade.
“Eu ficava muito tímido. Por exemplo, eu não trabalhava muito nos ateliês, na frente das pessoas. Eu tinha um pouco essa trava”, conta Rafael. A facilidade que tinha para pintar inspirado no trabalho dos pais lhe trouxe uma crise criativa em seus primeiros períodos de faculdade. Ele chegou a trancar o curso para repensar sua decisão. Esse processo teve uma solução quando Rafael Zavagli começou a se dedicar à pintura a óleo, que nunca foi a especialidade da família.
“Quando descobri a pintura a óleo, tive a certeza de estar no lugar certo. Até então, eu não estava achando um caminho muito difícil”, comenta. “Descobri que precisava apanhar mesmo, encontrar uma coisa que me tirasse do lugar, me desse uma dor de cabeça. Aí que eu fui entender mais o processo de criação. Senti que me desvinculei, que estava num caminho que era meu.”
Na opinião dele, ser filho de um artista é positivo 90% do tempo, mas “essa nuvem de desconfiança, cobrança e de expectativa atrapalha um pouquinho”. “Isso nunca passou por eles (meus pais), sempre foi um problema meu”, diz. Para Rafael, ter podido contar com o suporte, a compreensão e a independência que seus pais lhe ofereceram foi algo fundamental em sua carreira. “Se por um acaso um filho meu passasse pelo mesmo processo, acho que eu agiria da mesma forma que os meus pais agiram comigo.”
*Estagiário sob a supervisão da editora Silvana Arantes