Há exatos 125 anos, era encenada pela primeira vez a peça “A gaivota”, de Anton Tchékhov (1860-1904). Se hoje ela é incensada como uma das mais importantes do dramaturgo russo, naquela noite de 17 de outubro de 1896 as coisas foram um pouco diferentes. Agressivo e irritado, o público do teatro Alexandrinsky, em São Petersburgo, vaiou tanto a encenação que Tchékhov cogitou desistir de escrever novas peças – o que, felizmente, não foi o caso.
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“Gaivota” – como a trupe optou por grafar, sem o artigo “A” – sucede uma primeira experiência de teatrofilme, com “Medeia”, de Eurípedes, na recriação textual da dramaturga Consuelo de Castro, que estreou no início deste ano. Segundo Bete, o teatrofilme surge como um casamento entre o cinema e o teatro, onde não há um roteiro cinematográfico, mas sim, a encenação diante das câmeras do texto como ele foi escrito.
“Assim como em ‘Medeia’, o que a gente faz com o texto são apenas alguns cortes, para entrar o cinema. Isso nos possibilita focar num gesto, numa emoção, num sentido, o que contribui para o entendimento da própria história”, explica. De resto, todo o processo segue a lógica do teatro, no sentido dos ensaios, da preparação e da encenação. “Inclusive financeiramente é um orçamento de teatro”, destaca.
Gabriel Fernandes aponta que a produção se pauta, também, pela artificialidade do teatro, sem tentar ou se pretender realista demais. “As flores são feitas com jornal, assim como a gaivota. A gente não entra numa casa, os cômodos não são cômodos, são cenários. Isso é uma coisa que a gente traz do teatro para o cinema”, explica.
ISOLAMENTO
A gravação de “Gaivota” ocorreu ao longo de 20 dias, seguindo todos os protocolos de prevenção à COVID-19 em um sítio em Itu (SP), onde a equipe e o elenco ficaram isolados. A obra conta a história de um núcleo familiar e seus agregados, enfatizando o conflito entre Arkádina, uma célebre atriz; seu filho Treplev (Matheus Campos), que pretende ser dramaturgo e escritor; a jovem aspirante a atriz Nina (Luiza Curvo), por quem ele é apaixonado; e o famoso escritor Trigórin (Flávio Rocha), companheiro de Arkádina.
“Isso de ficarmos isolados em um sítio acabou contribuindo para o coletivo, para a concentração, para o foco no trabalho, que pôde ser assimilado mais rapidamente e com muita intensidade. Foi, também, o que nos tornou capazes de fazer um filme com orçamento de teatro”, avalia Bete.
A confiança adquirida pela trupe com “Medeia” permitiu justamente que Gabriel, que tem formação em cinema, explorasse mais os recursos da linguagem audiovisual. Numa comparação com “Medeia”, Bete destaca que “Gaivota” contou com uma equipe maior e com novas complexidades. O palco virou cenário e foi parar no meio do mato, invertendo o pensamento comum de colocar o campo e a natureza, onde transcorre a peça, sobre o tablado.
Se a obra de Tchékhov se passa no gélido campo russo, a adaptação da Cia. BR116 recebeu contornos brasileiros: é uma peça de terreiro e de bando. “Essa é mais uma ‘Gaivota’ entre tantas bem-sucedidas, mas ela está imbuída da força artística brasileira e da beleza genuína no embate entre o novo e o velho, entre o ser e o não ser”, afirma a diretora e atriz.
OUTRA PERSPECTIVA
Dentro dessa experiência do teatrofilme, ela chama a atenção para a singularidade não só do resultado para os espectadores, mas também do processo para os atores e para a equipe envolvida – pessoas formadas fundamentalmente no campo das artes cênicas. “No dia da estreia, estávamos tão tensos e nervosos como se fosse teatro mesmo. Eu fiquei com o sentimento de estar atuando, não consegui sequer assistir direito, tamanha minha tensão. Costumamos dizer, no meio teatral, que o segundo dia de uma peça é quando dá tudo errado, porque os atores relaxaram depois da estreia, então costuma ser o pior dia da temporada. Só que nesse caso não existia essa possibilidade, porque é uma obra audiovisual”, aponta.
Na avaliação de Gabriel Fernandes, o formato guarda algo de frustração. “Os atores vão lá, ensaiam, trabalham, fazem as cenas e acabou. Fica aquele sentimento de ‘Ah, amanhã não tem mais? Não vamos fazer uma temporada?’ É no reencontro diário com o público que o ator tem a possibilidade de mudar alguma coisa, melhorar o personagem, caprichar mais numa cena e, nesse caso, obviamente, isso não é possível. Tem essa lacuna, falta esse preenchimento do dia a dia do teatro”, observa.
Bete corrobora esse sentimento: “Sou basicamente uma atriz de teatro, e numa temporada, cada dia você transforma alguma coisa, muda sua atuação de acordo com a plateia, com o tipo de recepção que a peça está tendo naquele momento. Parece que não, mas toda encenação é sempre bem diferente de um dia para o outro. No cinema, você tem que desapegar, tem que entregar, porque depois do produto pronto, não há a possibilidade de mudar mais nada”.
Se a experiência do teatrofilme implica, por um lado, nessa mudança de perspectiva por parte de quem está fazendo, por outro representa a possibilidade de maior alcance, de fazer o trabalho chegar a uma plateia numericamente ilimitada. “O acesso à sua obra é muito interessante, muito democrático. O ritual do teatro, o olhar, os silêncios, isso tudo é uma força impressionante, insubstituível, mas com uma obra audiovisual, no ambiente on-line, você, claro, chega a muito mais pessoas”, aponta Bete.
ACESSO AO PÚBLICO
Com “Medeia”, a Cia. BR116 fez a experiência de disponibilizar a produção em determinados dias e horários, como se fosse mesmo uma peça em cartaz. Já “Gaivota” pode ser acessada a qualquer momento pelos canais da trupe. Essa opção se deve ao arrefecimento da pandemia da COVID-19, o que vem permitindo uma retomada das rotinas que, nem sempre, permitem que o público reserve um horário específico para a fruição de uma obra.
Mas para manter o tom de temporada, a Cia. BR116 está promovendo uma série de encontros e reflexões em torno dos temas que circundam “Gaivota”, desde elementos técnicos para a produção do teatrofilme, como fotografia e cenotecnia, até diálogos e cruzamento do texto de Tchékhov com o contexto social e político do Brasil atual. Os encontros, que reúnem convidados especiais e artistas parceiros, acontecem através do perfil da companhia no Instagram e, também, do seu canal no YouTube.
Segundo Bete, os encontros surgiram como uma contrapartida exigida pela Lei Rouanet, mas foram abraçados e aperfeiçoados pela trupe. “Em vez de fazer uma coisa só por fazer, o que é comum – muitas vezes as pessoas executam essa contrapartida de maneira frouxa –, resolvemos elaborar e fazer algo legal, que tem a ver com formação. Criamos roteiros, pensamos em temas, então é um negócio que pode ser estimulante para pessoas interessadas em teatro. Estamos gostando muito desse ciclo, porque estamos tendo um retorno bacana”, diz.
Gabriel acrescenta que tanto os integrantes da Cia. BR116 quanto os convidados e artistas parceiros falam da própria experiência no fazer artístico, desmontando mitos, dissipando dúvidas e “tirando o glamour ou colocando quando precisa ser colocado”.
“Dividimos em temas, falando do papel da arte, por exemplo, ou sobre a função do diretor, o que é fazer teatrofilme, o que é preciso para manter uma companhia, enfim, toda essa estrutura que a gente resolveu dividir com pessoas interessadas, sobretudo com jovens, alunos ligados em teatro”, reforça Bete.
RAIO X
A Cia. BR116 foi fundada há 11 anos por Bete Coelho, Gabriel Fernandes e Ricardo Bittencourt, a partir da montagem do espetáculo “O homem da tarja preta”, de Contardo Calligaris (1948-2021). Em seu repertório estão os espetáculos como “O terceiro sinal” (2010), de Otavio Frias Filho, que realizou temporada histórica no Teatro Oficina, em 2018, onde recebeu quase 3 mil pessoas; e “Mãe coragem” (2019), de Bertolt Brecht, que reuniu cerca de 8,5 mil pessoas em sua temporada no Sesc Pompeia.
“Gaivota”
De Anton Tchékhov, com a Cia. BR116. Disponível em 4k no site da Cia. BR116 (www.ciabr116.com) ou no YouTube (www.youtube/ciabr116) com legendas em inglês, espanhol e português descritivo, em tempo integral, até 21 de novembro.