Inspirado por livros dos Panteras Negras, o jovem Saulo Chuvisco (Lucas Limeira) começa a lutar por mudanças em sua escola e acaba entrando em conflito com alguns estudantes e professores. Após sofrer um insulto racista dentro da sala de aula, ele decide enfrentar a direção e usar o poder dos smartphones para iniciar uma greve estudantil.
Essa é a premissa de “Cabeça de nego”, do diretor cearense Déo Cardoso, que estreia nesta quinta-feira (21/10) no Cine UNA Belas Artes, em Belo Horizonte. O diretor, que tem cinco curtas e dois documentários no currículo, comandou oficinas de cinema e audiovisual em escolas públicas cearenses, em 2015. Dessa experiência surgiu a inspiração para seu primeiro longa de ficção.
“Fiz muitas amizades (nas escolas), jogava bola com a galera no intervalo. Não estava fazendo pesquisa. Estava trabalhando e, eventualmente, ali, jogando bola com a galera, vendo o que estava acontecendo, entendendo as estruturas das escolas”, diz Cardoso, de 45 anos.
Anos depois da realização das oficinas, o diretor se deparou com alunos arremessando pedras na porta de uma escola e descobriu que o estopim foi a expulsão injusta de um aluno. Foi quando ele decidiu discutir o que o sistema educacional reserva para os mais pobres no Brasil, especialmente a população negra.
PRISÕES
“Muitas escolas públicas foram erguidas, inclusive arquitetonicamente, para simular prisões. Existe uma certa lógica ali que é muito excludente”, diz. No filme, os celulares e a internet nas mãos de jovens são apresentados como ferramentas capazes de alterar a realidade do racismo e da precariedade do sistema público de educação.
Apesar dos problemas ligados à tecnologia no desenvolvimento dos jovens, o diretor acredita que o mundo digital traz pontos positivos para o combate ao racismo através da democratização da informação. Ele cita como exemplo a repercurssão do assassinato de George Floyd, em maio de 2020, nos EUA, que gerou protestos em diversos países.
Ao mesmo tempo, “Cabeça de nego" destaca a importância de uma única professora para mudar a realidade de um jovem. Saulo tem acesso a livros sobre os Panteras Negras e o debate racial graças à professora Eliane, interpretada por Jéssica Ellen. A atriz conquistou o papel antes de viver a professora de história Camila, que luta contra o preconceito e as injustiças sociais na novela “Amor de mãe” (2019), da Rede Globo.
“Todos nós tivemos um professor ou uma professora marcante, que fez a gente enxergar por um viés diferente”, comenta o diretor. “Cabeça de nego” salienta como o racismo permeia diversos setores da sociedade brasileira. “Se o racismo ainda está vivo, é porque a gente não soube combatê-lo. A ferida está aberta desde a época do Brasil colônia”, afirma.
Enquanto escrevia o roteiro, o diretor testemunhou a ascensão de um pensamento revisionista da história do negro na sociedade brasileira, respaldado pelo governo federal. “O cara chega na televisão e diz que os próprios africanos escravizaram e se venderam para o europeu, sem contextualizar em que situação isso aconteceu. Ele apenas traz isso. Então o filme é um fruto do que a gente está vivendo e eu quero muito fazer outros (longas sobre o tema).”
Déo Cardoso fez questão de não identificar o local onde o filme se passa para demonstrar como a realidade apresentada se enquadra em qualquer parte do Brasil. O final da trama é aberto a diferentes interpretações e convoca os espectadores à reflexão. Ao encarar o sistema, o protagonista provoca cada um a se posicionar em torno das agressões frequemente sofridas pelos negros, inclusive com referências ao assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, em 2018. Para o diretor, é uma forma de questionar “de que lado a gente vai ficar”.
“Cabeça de nego” conquistou apoio financeiro para a distribuição do fundo do Festival Gotemburgo, na Suécia, destinado a projetos audiovisuais inovadores em países onde a liberdade de expressão está ameaçada.
O diretor se diz tão ansioso para a estreia quanto estava na primeira exibição do longa, ocorrida na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020, que terminou com aplausos de pé da plateia. “Eu me lembro que desabei, me escondi no cantinho e chorei, porque estava tenso. Foi aquele choro de alívio, eu estava na cabeça que a galera ia vaiar (risos).”
O diretor acredita que a ascensão do cinema negro e da periferia brasileira é fruto de políticas públicas na educação e no audiovisual. Ele cita como exemplo a produtora mineira Filmes de Plástico, de Contagem.
“O surgimento de uma cena de cinema negro, LGBTQUIA%2b, de mulheres, esse cinema indentitário é fruto de políticas públicas necessárias. Qualquer país que se preze precisa ser diverso. Tem vaga para tudo, tem público para tudo.”
“CABEÇA DE NÊGO”
(Brasil, 2020, 1h25min). Direção e roteiro: Déo Cardoso. Classificação: 14 anos. Em cartaz a partir desta quinta-feira (21/10), no Cine UNA Belas Artes (Sala 1, às 16h)
*Estagiário sob a supervisão da editora Silvana Arantes