Para a escritora e linguista Conceição Evaristo, é preciso se livrar de uma visão engessada pelo tempo para se chegar com mais inteireza à obra de
Carolina Maria de Jesus
(1914-1977). A mulher negra, paupérrima, com baixa escolaridade, mãe de família, que morou na favela do Canindé, em São Paulo, trabalhou como catadora de papel e ganhou projeção nacional quando seu diário foi descoberto e publicado, em 1960, com o título “Quarto de despejo”, é o tema do projeto Letra em Cena que será exibido nesta segunda-feira (25/10), pelo canal oficial do Minas Tênis Clube no YouTube.
“É preciso se desvencilhar das leituras que foram feitas dela na década de 1960, quando o foco recaía muito sobre o fato de ser uma mulher favelada, negra, analfabeta – alguns diziam semianalfabeta – que tinha escrito um livro falando sobre a miséria e a fome que ela passava com seus filhos”, afirma Conceição.
"Acho que Carolina simboliza muito o esforço e a maneira como as classes populares se apropriam da língua portuguesa, do livro, da escrita. A coragem dela de se pronunciar como escritora deixa um vestígio, uma herança do tempo em que populações que não eram consideradas cultas já produziam uma escrita, produziam sua poesia, e assim adquiriam esse poder de ter uma voz mais ativa"
Conceição Evaristo, escritora
Em sua opinião, a imagem construída naquela época e que ainda perdura é um empecilho para se chegar a uma compreensão mais profunda do texto da escritora, que, com “Quarto de despejo”, foi traduzida para 14 idiomas. Conceição observa que o livro que deu projeção a Carolina não fala apenas de uma fome física, mas de “uma fome que todos nós sentimos, que é a fome de compreensão da vida, que, no caso dela, passava pela experiência da solidão”.
ESCRITA
Responsável por assinar a introdução do recém-lançado “Casa de alvenaria” (Companhia das Letras), que reúne os originais de Carolina Maria de Jesus escritos a partir da publicação de “Quarto de despejo”, quando ela deixou a favela do Canindé e morou por alguns meses em Osasco (SP), Conceição Evaristo diz que os textos dessa nova obra apresentam uma autora que questiona, que reflete sobre as relações amorosas, que expõe sua carência humana e afetiva. A introdução de “Casa de alvenaria” foi escrita a quatro mãos com Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina.
“O que talvez as pessoas não percebam muito bem é como Carolina se colocava frente à escrita. A tônica de vida dela era a escrita, então temos que ler Carolina Maria de Jesus como uma escritora em permanente processo criativo. Ela sabia que estava trabalhando com a arte da palavra, então experimentava do português clássico ao neologismo e ao português coloquial, do dia a dia, que passa por uma gramática do cotidiano”, aponta. “É preciso ler Carolina Maria de Jesus como alguém que tem um processo próprio de escrita, alguém que, como qualquer escritor, busca criar através da palavra.”
Conceição diz que, se ao longo dos últimos anos, houve um aumento do interesse pela obra de Carolina nos círculos acadêmicos, isso se deve a alguns fatores. E ela enfatiza que se trata de um aumento do interesse por parte de uma parcela da sociedade, e não de um “resgate” da escritora.
“O movimento social negro nunca se esqueceu dessas autoras e autores que foram considerados ‘esquecidos’. O movimento social negro tem uma pauta e uma abrangência maiores que o círculo acadêmico, então sempre falou dela. Há mais de 10 anos a gente inaugurava uma biblioteca no Centro Cultural José Bonifácio, no Rio de Janeiro, batizada Carolina Maria de Jesus”, diz.
“O movimento social negro nunca se esqueceu dessas autoras e autores que foram considerados ‘esquecidos’. O movimento social negro tem uma pauta e uma abrangência maiores que o círculo acadêmico, então sempre falou dela. Há mais de 10 anos a gente inaugurava uma biblioteca no Centro Cultural José Bonifácio, no Rio de Janeiro, batizada Carolina Maria de Jesus”, diz.
“Maria Firmina dos Reis, para quem a academia se volta mais agora, é um nome que já circula dentro do movimento social negro há muito tempo. Meu primeiro lugar de recepção como escritora foi o movimento social negro, então, nesse sentido, ele é mais atento”, destaca Conceição.
Ela considera que a lei de 2003 que obriga o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas, as ações afirmativas e uma maior presença de estudantes negros no ensino superior são alguns dos fatores que reivindicam esse olhar mais atento da academia para tais obras e autores.
“A presença de um corpo discente maior de negros promove essa amplificação da leitura de autoria negra. As culturas indígenas também entram nesse espectro, têm sido foco de uma maior observação da academia”, diz, acrescentando que, na esteira desse movimento, há a descoberta de um público interessado nesses textos.
“Não só um público negro, mas também de professores e pesquisadores que, independentemente da questão de cor, estão ali também querendo ampliar o próprio campo de estudo da literatura, querendo pensar outros intelectuais que estão aí produzindo pensamento, produzindo saber, e que não necessariamente nasceram nas classes que detêm a hegemonia cultural.”
HERANÇA
Conceição destaca que a herança de Carolina Maria de Jesus reverbera no espaço que as populações marginalizadas têm hoje no âmbito da produção literária. “Acho que Carolina simboliza muito o esforço e a maneira como as classes populares se apropriam da língua portuguesa, do livro, da escrita. A coragem dela de se pronunciar como escritora deixa um vestígio, uma herança do tempo em que populações que não eram consideradas cultas já produziam uma escrita, produziam sua poesia, e assim adquiriam esse poder de ter uma voz mais ativa”, diz.
Ela cita as expressões da periferia no campo das artes como um reflexo da atitude afirmativa de Carolina Maria de Jesus. “Esses meninos que hoje produzem essa poesia viva, que inclusive brinca com a língua portuguesa, eles se legitimam e legitimam seus próprios trabalhos. Mesmo que sejam criações que não falam de Carolina, são herança dessa coragem que ela nos deixa. Quando Emicida diz que é ‘nóis por nóis mesmo’, é isso de pegar a língua portuguesa e criar uma poética própria, uma poética que contamina.”