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Estado de Minas MÚSICA

Ana Cañas grava clássicos de Belchior e inaugura nova fase de seu canto

Em seu primeiro disco exclusivamente como intérprete, cantora e compositora adota 'um caminho mais sutil', depois de perceber que 'o grito provoca um silêncio'


28/10/2021 04:00 - atualizado 28/10/2021 07:56

Close no rosto maquiado de Ana Cañas
A cantora e compositora Ana Cañas estreitou laços com a obra de Belchior durante a pandemia (foto: Marcus Steinmeyer/Divulgação)
Ana Cañas não sabe dizer exatamente o ano em que travou contato com a obra de Belchior (1946-2017), mas sabe que foi na adolescência, quando ouviu "Como nossos pais", muito provavelmente na voz de Elis Regina (1945-1982). 

Já adulta, ela voltou a se interessar pelo trabalho do cantor e compositor cearense, e a música "Alucinação" passou a fazer parte do repertório de seus shows. Mas foi somente em 2020, em plena pandemia da COVID-19, que a obra de Belchior passou a ocupar boa parte do tempo da cantora e compositora paulistana.

Em julho do ano passado, ela realizou uma live integralmente dedicada ao repertório dele. O show teve mais de duas horas de duração e gerou pedidos para que Ana Cañas registrasse em disco suas versões das músicas do rapaz latino-americano. E assim nasceu "Ana Cañas canta Belchior", produzido via financiamento coletivo.

"Foi um pedido tanto dos meus fãs quanto dos fãs do Belchior. Como estávamos todos trancados em casa por conta do vírus, muita gente se engajou na apresentação, e eu recebi mensagens do Brasil inteiro pedindo para que gravasse o disco", ela conta. "Quando a coisa vem da vida, eu recebo e escuto. Quando uma coisa se impõe, ela precisa ser atendida."

Na ativa desde antes de estrear em disco, Ana Cañas lançou seu primeiro álbum, "Amor e caos", em 2007. Em 2009, ficou nacionalmente conhecida ao gravar com Nando Reis "Pra você guardei o amor". Depois disso vieram "Hein?" (2010), "Tô na vida" (2015) e "Todxs" (2018). Esse é seu primeiro trabalho unicamente como intérprete.

"Eu vinha escrevendo canções, estava pré-produzindo um disco autoral. Essas músicas estão guardadinhas. De certa forma, a pandemia nos exauriu também. Admiro muito os artistas que conseguiram produzir muito num momento em que a gente viveu em meio a tanto descaso e morte. Eu não fui um deles"

Ana Cañas, cantora e compositora

DENSIDADE

"Como eu já cantava Belchior nos meus shows e a reação do público era sempre muito bonita, sempre achei que tinha um borogodó entre mim e ele. Como cantora, eu sabia que, em algum momento da minha carreira, eu faria um disco como intérprete. Calhou de ser com as músicas do Belchior porque foi um pedido das pessoas. Elas assistiram à live e perceberam que tinha acontecido uma coisa forte ali. E eu topei, sem saber da densidade, da dificuldade e das idiossincrasias que as músicas dele possuem", afirma.

Segundo ela, a principal característica das músicas de Belchior é a mensagem, e não a melodia. "Ele escolhe privilegiar as ideias, por isso vários versos se transformam em poemas que as pessoas carregam em suas vidas. Atualmente, acho que o Caetano está numa fase assim. Os últimos discos dele exploram mais as ideias e as letras do que propriamente a sonoridade e as melodias."

Isso não torna a interpretação mais fácil, ela afirma. "É extremamente desafiador. Ele tem o hábito de colocar frases que aparentemente não cabem na melodia, mas acabam cabendo. Mas o que importa é o texto e a mensagem que ele procura passar."

Lançado nas plataformas digitais na última sexta-feira (22/10), "Ana Cañas canta Belchior" está sendo divulgado a conta-gotas desde maio passado, quando a cantora lançou o single "Coração selvagem". Em julho, ela lançou um EP com quatro faixas: "Alucinação", "Velha roupa colorida", "Galos, noites e quintais" e "Na hora do almoço".

O segundo EP, com mais quatro músicas, chegou em agosto, contendo "Sujeito de sorte", "Divina comédia humana", "A palo seco" e "Comentário a respeito de John".

O disco completo tem 14 músicas e inclui ainda "Apenas um rapaz latino-americano", "Como nossos pais", "Fotografia 3x4", "Medo de avião" e "Paralelas". Todas essas canções (e três outras: "Mucuripe", "Noves fora" e "Tudo outra vez") fizeram parte da live apresentada por Ana.



Seis das músicas presentes no disco são de "Alucinação" (1976), o álbum mais famoso de Belchior. Para Ana Cañas, o disco se mantém atual porque o contexto em que ele foi lançado guarda relação com o presente.

"São momentos que dialogam em termos de opressão. 'Alucinação' sob a moldura da ditadura. Hoje, a gente vive sob a moldura de um governo de extrema-direita que não reconhece a cultura e a arte como algo de valor inestimável para o país. Mas quando me perguntam por que a obra de Belchior ainda segue atual, também penso na característica de gênio que há nas canções e nos trabalhos que ele lançou."

A artista conta que se voltou para a obra de Belchior enquanto passava por uma crise existencial com seu próprio jeito de cantar, antes mais vigoroso e até mesmo gritando. Agora, como mostra o disco, ela opta por uma abordagem mais suave das canções e insere seu canto de forma sutil.

"Percebi que o grito provoca um silêncio. Cantar desse jeito me deixava apreensiva. Ao mesmo tempo, esse movimento dialoga com a minha militância, de sentir a mudança política se aproximando do Brasil. O Belchior entra num ressurgimento do meu próprio canto, que agora vai para um caminho mais sutil, tem uma delicadeza, sem deixar de lado a profundidade", diz.

Para ela, é um desafio regravar canções que são tão celebradas pelo público brasileiro. O segredo para fazer isso da melhor maneira é trazer para um universo novo, que foi o que Ana Cañas fez.

SOMAR

"Se você vai mexer numa coisa muito bem executada e gravada, é necessário somar e trazer alguma novidade. Artisticamente, é um desafio muito salutar. Quando você escreve suas próprias músicas, elas não existem ainda, estão nascendo. Para interpretar músicas de um artista como Belchior é preciso que exista uma pesquisa por trás e um cuidado maior com a interpretação."

Ana Cañas parou de escrever músicas enquanto desenvolvia o disco dedicado ao repertório de Belchior. "Ele exige uma atenção completa. As músicas dele exigem isso. Elas são ricas e complexas. Não é brinquedo. Eu vinha escrevendo canções, estava pré-produzindo um disco autoral. Essas músicas estão guardadinhas. De certa forma, a pandemia nos exauriu também. Admiro muito os artistas que conseguiram produzir muito num momento em que a gente viveu em meio a tanto descaso e morte. Eu não fui um deles", ela conta.

Antes de qualquer próximo passo, "Ana Cañas canta Belchior" deve voltar a ser um show, desta vez presencialmente, com público, mas somente no próximo ano. "As pessoas merecem. Será um show que não é só meu, também é dele [Belchior]. Vai ser um momento muito especial para que possamos cantar as músicas e celebrar a potência de uma obra bem-feita. Belchior é uma epítome e esse reencontro do público com as músicas dele vai ser muito lindo", ela afirma.

Aos 41 anos recém-completados, a cantora avalia que o caminho percorrido até aqui, pontuado pelos seis discos de estúdio que lançou, reflete diferentes fases de sua vida pessoal. "Eu tenho uma discografia não linear e esses trabalhos refletem momentos da minha vida. Gosto muito de algumas coisas que eu fiz e de outras eu não gosto, mas aprendi a me perdoar. Isso é o legal da caminhada", ela afirma.

Atualmente, o que define sucesso para ela é sua felicidade. "Quando eu era mais nova, até tinha uma preocupação com números. Hoje, isso está nos plays e likes, que têm um lado muito cruel. Antes a gente jogava uma música no mundo e se preocupava se ela ia tocar o coração das pessoas. Hoje, eu meço meu sucesso pela minha felicidade. Eu me sinto realizada, ainda mais num país onde viver de arte é um privilégio que pouquíssimas pessoas têm."

Capa do disco ''Ana Cañas canta Belchior''
(foto: Reprodução)

“ANA CAÑAS CANTA BELCHIOR”

.De Ana Cañas 
.14 faixas
.Independente
.Disponível nas plataformas digitais


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