A Feira de Cerâmica de Minas Gerais teve início nesta segunda-feira (1º de novembro) com o objetivo de ampliar o olhar do público sobre a manipulação da cerâmica para além dos utilitários e das tradições milenares. A programação on-line tem a participação de 56 artistas e se estende até 18 de dezembro, com oficinas, bate-papos e loja virtual.
Pelo segundo ano consecutivo, o tradicional evento é realizado em ambiente virtual em função da pandemia de COVID-19. A feira, idealizada pela ceramista mineira Erli Fantini em 1999, sempre ocupou diferentes espaços públicos de Belo Horizonte como ponto de encontro entre os artistas e o público. A última edição presencial, em 2019, foi realizada no Mercado Central.
Em 2021, a Feira de Cerâmica tem curadoria dos artistas plásticos mineiros Regiane Espírito Santo e Sebastião Pimenta. O modelo a distância foi uma novidade para boa parte dos ceramistas, acostumados a divulgar e vender seus trabalhos nas edições físicas. A adaptação para o ambiente on-line incluiu o processo de fotografar as obras, editar as imagens e disponibilizá-las na loja virtual.
“São coisas muito novas para todos nós, principalmente porque o nosso grupo de ceramistas não é da geração com 20, 30 anos. Os mais novos estão na faixa dos 40”, conta Regiane Espírito Santo, de 59 anos. Na primeira edição on-line da mostra, em 2020, o modelo não abalou significativamente as vendas da feira. “Muita gente vendeu mais (em comparação com as edições presenciais). E outros venderam muito menos”, descreve a curadora.
O principal propósito desta edição é apresentar a versatilidade da cerâmica para além dos objetos utilitários, como copos, filtros e potes de barro. A intenção é propiciar uma forma crítica da consciência cultural e um olhar íntimo em relação aos moldes, padrões e utilidades da vida prática. “Nosso olhar está sendo para os objetos artísticos, independentemente da utilidade”, define Regiane.
Ela admite que a cerâmica é injustiçada dentro do universo das artes. “Todos os artistas renomados do modernismo fizeram cerâmica, como Salvador Dalí e Picasso. Mas como a cerâmica nasceu como um utilitário, ou seja, para fazer caneca de cerveja, tigela para fazer comida, ela nunca foi considerada uma arte. Mesmo com os grandes artistas que já fizeram cerâmica, esse material nunca é bem-visto”, justifica.
Regiane conta que a cada edição da feira são produzidas mais variações de arte a partir do barro e garante que este ano não vai ser diferente. Esculturas, luminárias e objetos decorativos fazem parte do acervo dos 56 artistas (que inclui ela). “Vamos ter inovações bem interessantes, bonitas e de todos os preços”, disse.
NOVOS ARTISTAS
A feira inova ao convidar artistas de diferentes regiões do Brasil para participar de bate-papos sobre o processo artístico, entre eles Maria Cheung (Foz do Iguaçu, PR), Sonia Bogaz (São Paulo), Leandro Kanagusku (São Paulo) e o influencer César Augusto Barbosa (São Paulo). As conversas, mediadas por Regiane Espírito Santo e Sebastião Pimenta, acontecem no Instagram (@feiradeceramicamg), em 10, 17 e 24 de novembro, às 20h. A conversa fica disponível na plataforma após a transmissão.
A abertura, nesta segunda-feira (1º/11), foi com Maria Cheung, um dos mais importantes nomes da cerâmica mundial, tendo exposto na Índia, Áustria e Alemanha. Nascida na China, ela se mudou para o Brasil em 1964, quando tinha apenas 7 anos. No entanto, só foi apresentada à cerâmica na universidade. A experiência foi uma paixão à primeira vista, segundo diz.
“Nunca tinha trabalhado com cerâmica. Eu mesma me surpreendi com a facilidade. Na primeira aula, já tive muita facilidade com a matéria”, diz Maria Cheung, de 63 anos, que faz sua estreia na Feira de Cerâmica.
A artista inaugurou seu ateliê em Foz do Iguaçu (PR), em 1995. Sua obra é conhecida por retratar questões do Oriente, como a mulher e a criança chinesa, com um fazer artístico conceitual e contemporâneo, sendo exemplo das múltiplas variedades da cerâmica.
“Neguei minha cultura por muito tempo. Quando era criança, optei por negar minhas raízes (chinesas) para ser aceita na escola, na rua onde eu morava”, descreve. Na faculdade, por influência de um professor, Maria resgatou as raízes orientais em seu processo artístico. “Em geral, as pessoas pensam na cerâmica só como objeto utilitário ou decorativo. Mas argila é um suporte como qualquer outro material. Eu uso para expressar as minhas ideias, trazer a minha cultura e provocar uma reflexão, principalmente sobre essa condição da mulher”, destaca a artista plástica.
Ao longo da carreira, Maria Cheung produziu obras baseadas no pé de lótus – tradição chinesa de amarrar os pés das mulheres para modificar o formato em função de uma exigência estética masculina. “Eu me lembrei da minha bisavó, que tinha esses pés enfaixados e totalmente deformados, horrorosos. Foi uma coisa que me marcou, mas não sabia que era por causa disso (da cultura de opressão feminina). Então, comecei a fazer um trabalho enorme sobre esses pés, porque sou mulher, chinesa, artista.”
“Eu trago as coisas da minha cultura para provocar as pessoas a refletirem essa opressão. Não existe nos dias de hoje essa tradição (do pé de lótus), mas existem outras formas de opressão”, destaca a ceramista, que também desenvolveu esculturas baseadas na política chinesa do filho único, vigente entre 1970 e 2016, onde era permitido apenas um bebê por família. A obra critica a preferência dos casais por filhos do sexo masculino.
Patamar
A história e os detalhes do seu processo artístico fizeram parte do bate-papo mediado por Regiane Espírito Santo, que abriu a segunda edição virtual da Feira de Cerâmica. A artista afirma que são fundamentais eventos dedicados ao ofício para mudar o patamar da cerâmica, muitas vezes vista como uma “arte menor”. E considera que a tecnologia é um aliado importante para consolidar a versatilidade da arte nos dias de hoje. “Veio como uma ferramenta para auxiliar e nos aproximar muito mais.”
Entre novembro e dezembro, a programação da feira oferece seis oficinas voltadas para diferentes públicos e processos de manipulação de argila. São elas: Alguma criança quer aprender a fazer uma xícara? (com Djenane Vera Eduardo); Cerâmica para iniciantes (com Emanuelle Tolentino); Simplificando a química da cerâmica (com Eduardo Apolaro); Adorno corporal/Uma nova coleção (com Germana Arthuso); Oficina de objetos sonoros (com Cibele Tietzmann); e Printonclay – Introdução à técnica de impressão e transferência de imagens em cerâmica, (com Regina Mota).
As aulas serão ao vivo, por meio da plataforma Zoom. As inscrições estão abertas e devem ser feitas previamente no site https://www.feiradeceramicamg.com.br, com valores entre R$ 100 e R$ 200. A lista com os materiais necessários e as datas estão disponíveis na página da respectiva oficina.
A programação demonstra que a cerâmica também é para todos os gostos. “A criança, o adulto se sentem à vontade com isso. Não é um trabalho difícil, é uma manipulação simples. É só pegar na argila e começar a esticar. Qualquer um de nós pode fazer, é só acreditar”, descreve Regiane. Com formação em arte-terapia, ela acredita que a cerâmica cumpre um papel terapêutico importante neste período de isolamento social.
“A cerâmica alivia o estresse, a ansiedade. Você pega o seu sentimento e começa a representá-lo no barro. A argila recebe sua emoção, sabe? Ela é extremamente terapêutica”, afirma. “Assim que começou a campanha de vacinação (contra a COVID-19), por exemplo, muita gente veio me procurar no meu ateliê para fazer aula (de cerâmica). E não veio ter aula para ser ceramista, mas porque está precisando fazer alguma coisa”, revela a curadora da feira.
*Estagiário sob a supervisão da subeditora Tetê Monteiro
FEIRA DE CERÂMICA DE MINAS GERAIS
Edição virtual segue até 18 de dezembro pelo site, onde também podem ser feitas as inscrições par oficinas e consta a programação completa. Bate-papos, sempre às 20h, pelo Instagram.