O ano era 2002 e o cineasta Fernando Meirelles enfrentava a maratona de lançamento de “Cidade de Deus”. Isso incluiu uma palestra na escola da filha, Cacá, em São Paulo. O colégio compareceu em peso, e o diretor passou três horas conversando com os adolescentes.
Hoje, aos 65, Meirelles ri do episódio e afirma ter “até medo de pensar” nos conselhos que deu. Moratto, de 33, se recorda claramente de tudo. Mas não foi a conversa de quase 20 anos atrás (da qual Meirelles, obviamente, não se lembra) que o levou a trabalhar com o brasileiro-estadunidense Moratto. Ao assistir ao seu longa de estreia, “Sócrates” (2018), Meirelles se impressionou com “a sensibilidade que ele tem de colocar a gente dentro da cabeça do personagem”.
Já se preparando para ir embora, o diretor foi abordado pelo aluno Alexandre Moratto, de 14 anos. Este se apresentou e disse que, no futuro, seria cineasta. Meirelles sorriu, conversou com o garoto durante alguns minutos, deu-lhe alguns conselhos.
“7 prisioneiros”, que estreia nesta quinta-feira (11/11) na Netflix, é o segundo longa de Moratto – o filme é produzido pela O2 Filmes, que tem Meirelles como um dos fundadores. A história, com roteiro de Moratto e Thayná Montesso (também sua colaboradora no filme de estreia), acompanha dois personagens.
Mateus (Christian Malheiros) é um jovem pobre, que mora na região rural do estado de São Paulo com a mãe e as irmãs. Com outros garotos, ele é levado por um motorista de van para a capital paulista, com a promessa de um emprego. Ao chegar ao destino, um ferro-velho comandado por Luca (Rodrigo Santoro), o grupo tem os documentos recolhidos.
PUNIÇÕES
Os meninos não demoram a descobrir que não é trabalho o que têm ali – são praticamente escravizados por Luca. Qualquer possibilidade de fuga ou denúncia é passível de severas punições – tanto para eles quanto para suas famílias, que acreditam que eles estão bem.
Mateus logo se destaca do grupo por sua inteligência e acaba se aproximando de Luca. No momento inicial, promete aos colegas que a aproximação é para ajudar todos. Mas a relação se intensifica, assim como as animosidades entre os meninos, e Mateus terá que fazer uma escolha.
Moratto, que vive entre o Brasil e os Estados Unidos, testou cerca de mil garotos até encontrar Malheiros para protagonizar “Sócrates”, interpretando um menino pobre, negro e gay criado pela mãe. Com a morte dela, ele tenta sobreviver em São Paulo. No caso de “7 prisioneiros”, ele escreveu o papel de Mateus já pensando no ator.
Ainda que o destino do protagonista estivesse definido no início do projeto, Moratto conta que havia cinco ou seis maneiras possíveis para encerrar a história. “Na real, o fim mesmo foi algo que a gente decidiu no dia, no set. Queria um final mais realista e, de certa forma, este filme me lembra muito ‘Cidade de Deus’, pois ele trata de uma questão cíclica. O trabalho análogo à escravidão vai se perpetuando”, diz o diretor.
Meirelles emenda: “Em São Paulo, a gente ouve histórias desde sempre. Nos anos 1970, foram os coreanos que entraram na indústria têxtil e depois ascenderam. Veio então o ciclo dos bolivianos, que vai até hoje. Agora deve haver também muitos haitianos e venezuelanos”.
Um dos personagens colocados à força para trabalhar no ferro-velho, em dado momento da trama, é um boliviano. Esse homem, quando chegou ao Brasil, teve o passaporte retido e ficou trancado por seis meses, trabalhando, quase sem descanso, em uma fábrica de roupas. “(A presença dele) Lembrava a gente todo dia da importância do assunto. Fiz questão de que ele conversasse com todo o elenco”, comenta Moratto.
CLAUSURA
O ferro-velho, que concentra 70% da história, foi criado para o longa. “Tivemos enorme dificuldade de encontrar, pois todos estão ‘vivos’ e não tinha como fechar um negócio (para filmar). Tudo o que se vê lá veio da produção, o que consumiu grande parte do orçamento, e trabalhamos para criar a sensação de se estar enclausurado”, conta Moratto.
A relação entre Meirelles e Moratto, ou seja, o veterano e o novato, encontra outros paralelos em “7 prisioneiros”. O filme é estrelado por Santoro, que foi revelado pelas novelas antes de se tornar um dos principais intérpretes do cinema nacional, a partir de 2000. Já Malheiros, ainda que tenha estreado em “Sócrates” (uma produção independente pouco vista no Brasil), se consagrou na série “Sintonia”, da Netflix, na qual vive Nando, jovem de uma favela de São Paulo que entra para o tráfico.
Produção da Netflix, “7 prisioneiros” teve sua première no Festival de Veneza e foi exibido em um circuito restrito de salas no Brasil. No papel de produtor do longa, Meirelles comenta que o mercado nacional “está aquecido graças às plataformas”.
“(O streaming) Está salvando a área. Bolsonaro teve muito sucesso em desmontar o audiovisual. Está tudo parado. O que a Agência Nacional do Cinema (Ancine) faz hoje é tentar rever projetos aprovados 10 anos atrás e questioná-los.”
Meirelles afirma que, apesar da crise institucional no setor cinematográfico, não se acha hoje facilmente no país profissionais de cinema disponíveis. “A Netflix começou a fazer filmes, a HBO está com o projeto de 15 longas, a Warner de 19. Fora as séries, com Disney, Amazon, Apple, Star, o mercado explodiu”, cita.
“Hoje, se você quiser encontrar um montador para o seu filme, um fotógrafo, não acha. Roteirista então, tem que pegar senha e esperar no acostamento. Esse aquecimento fez surgir uma geração de gente muito talentosa, como o Alex (Moratto). Se um ano e meio atrás eu achava que o streaming iria mudar, hoje estou vendo a mudança. Dinossauros como eu vão ser enterrados, porque o mercado está bombando de gente nova”, diz.
“7 PRISIONEIROS”
(Brasil, 2021, 93min, de Alexandre Moratto, com Christian Malheiros e Rodrigo Santoro) – Estreia nesta quinta (11/11), na Netflix
"(O streaming) Está salvando a área. Bolsonaro teve muito sucesso em desmontar o audiovisual. Está tudo parado. O que a Ancine (Agência Nacional do Cinema) faz hoje é tentar rever projetos aprovados 10 anos atrás e questioná-los"
Fernando Meirelles, cineasta e produtor de "7 prisioneiros"
três perguntas para...
Christian Malheiros e Rodrigo Santoro
atores de “7 prisioneiros”
Christian, assim como “Sócrates”, em que você também foi dirigido por Moratto, Mateus é um menino negro, pobre, que vai para a capital paulista em busca de uma vida melhor por causa da mãe. Que relações você enxerga entre os dois personagens?
Todos os personagens que já fiz ou vou fazer partem do princípio de que sou um ator negro de periferia. A minha cor e a minha vivência nunca vão deixar de fazer parte do personagem que eu for interpretar. Sócrates e Mateus estão na busca pela sobrevivência e em se manter vivos. O Mateus está trabalhando no sonho dele, a partir da realidade em que sua família vive. É vilão? Mocinho? O que o leva a fazer isso? Como ser humano, tento me colocar na realidade do trabalho análogo à escravidão, em que todo mundo fica rendido. Mas, como intérprete, tenho que me distanciar disso. A partir disso, vou tentar humanizar o personagem, tentando entender o jogo dele. Qual é o certo e o errado? Acho que o público também vai entrar neste dilema.
Rodrigo, como você se preparou para interpretar o Luca?
Não queria localizar (as pessoas) para não expô-las, mas fiz bastante pesquisa no Rio e em São Paulo. Não é a primeira vez que me aproximo de pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade, estão próximas da criminalidade, da miséria. Mas não queria justificar e colocar o personagem como vítima, ainda que ele não deixe de ser um produto do sistema. Meu processo de laboratório também teve uma grande pesquisa sobre o tema. Desde o princípio, sabia que estava falando de um produto de desigualdade. É diferente debater e se aproximar dele (do tema). Tentei ser o mais neutro possível, fazendo com que se possa compreender, mas não julgar.
Acreditam que o filme possa levantar um debate?
Malheiros –
No Brasil, o cinema cumpre seu papel no entretenimento, mas também tem um lado social, pois usa seu espaço para expor feridas que não conseguimos sanar. Isso é um reflexo do Brasil colonial, nada é novo, e o filme talvez não ache uma resposta, mas abre um caminho para a reflexão. Esse papel social o cinema cumpre, seja como uma grande comédia ou com um filme como “7 prisioneiros”.
Santoro –
O filme traz à tona um tema real, indigesto. Na verdade, a gente está falando de outra coisa que é a nossa maior ferida: a desigualdade social. Os personagens são produtos de um sistema excludente, e a reflexão transcende a história do ferro-velho. No final, o espectador é deixado com um dilema moral, e é aí que acho que o debate se levanta.