Jornal Estado de Minas

GASTRONOMIA

Livro póstumo de Anthony Bourdain revela tesouros gastronômico e urbanos

Recém-lançado no Brasil, “Volta ao mundo: Um guia irreverente” (Intrínseca) é um livro de Anthony Bourdain que não tem uma só palavra escrita por ele. Mas seu espírito se mantém, ao longo das quase 500 páginas de um guia que foge totalmente do convencionalismo, assim como fez o chef, escritor e apresentador de TV, em sua vida e em sua carreira.





O livro tem como coautora a editora e escritora Laurie Woolever, que trabalhou com Bourdain por quase uma década. Chamada por ele de “tenente”, Laurie também coescreveu outro título, “Apetites – Um livro de receitas” (2016). Em setembro passado ela lançou nos EUA “Bourdain: The definitive oral biography”, por ora inédito no país.

Bourdain – que suicidou-se aos 61 anos, em 8 de junho de 2018, em um hotel em Estrasburgo, na França, onde gravava seu programa “Lugares desconhecidos”, da CNN –, chegou a ter uma única conversa com Laurie sobre o livro. Pouco tempo antes de sua morte, ela relata na introdução, houve uma reunião em seu apartamento, em Nova York.

Na época, Bourdain havia voltado a fumar. Era um cigarro após o outro. Por causa da reclamação dos vizinhos, ele colocou no apartamento – “um fac-símile razoável de uma suíte de seu hotel favorito de Los Angeles, o Chateau Marmont” – um exaustor de fumaça de porte industrial. Laurie saiu da reunião fedendo a cigarro, mas de posse de uma gravação de uma hora contendo o que seria a estrutura do guia. Os dois nunca mais se viram.





No período em que as pessoas estão voltando a viajar, sem voos muito altos – tanto por causa dos protocolos sanitários quanto pela crise econômica – um guia de viagem que passa por 43 países parece algo absolutamente desnecessário. Seria, se fosse realmente um guia de viagens. 

Crônicas

Mas não: “Volta ao mundo: Um guia irreverente” se assemelha mais a uma coletânea de crônicas sobre lugares (alguns comuns, outros totalmente exóticos aos nossos olhos), hotéis, restaurantes (tanto de alta gastronomia quanto de comida de rua) e, principalmente, pessoas (seja o chef superestrelado ou um morador local que ele conheceu na incursão). O olhar arguto nunca recai na obviedade, e isto faz com que, de casa, viajemos com Bourdain.

Em ordem alfabética – começando pela Argentina e terminando pelo Vietnã –, cada capítulo é iniciado com reflexões de Bourdain sobre determinado local. Tais trechos foram retirados principalmente das séries que ele protagonizou: “Sem reservas” (2011-2012) e “Fazendo escala” (2011-2013), no Travel Channel, e o já citado "Lugares desconhecidos”, que a CNN levou ao ar de 2013 até a morte do apresentador.





Laurie complementa as informações com dados práticos de cada local (serviço dos restaurantes, hotéis e aeroportos) e com observações que ela própria colheu nas viagens que fez. A edição do livro facilita para o leitor que quiser se ater somente às informações de Bourdain: tudo o que ele disse está em negrito.

Uma volta ao mundo pode ter a extensão que seu viajante quiser. O livro não tem a pretensão de percorrer todo o globo. É o que fica claro com as opções feitas. Os Estados Unidos ganham cerca de 100 páginas, com relatos detalhados de várias cidades. A Tailândia, um dos países mais visitados do Sudeste Asiático, não aparece no livro, ao passo que Macau, menos popular entre os ocidentais, sim.

Brasil

Bourdain esteve em diferentes ocasiões no Brasil – na última delas, em 2016, fez uma incursão por vários bares e restaurantes de Belo Horizonte. Mas é Salvador a única cidade contemplada no livro. Para nós, mais interessantes que suas descrições do acarajé e da caipirinha são suas observações sobre as pessoas na capital baiana – e as consequências, para o intestino, do excesso de azeite de dendê.




Na ausência de grandes explanações de Bourdain sobre determinado destino, a coautora convidou pessoas próximas ao chef e escritor para pequenas crônicas. O músico e produtor Steve Albini escreveu “Onde eu levaria Tony se ele ainda estivesse aqui”, texto com dicas de comidas de lanchonetes e comida de rua de Chicago. Irmão de Bourdain, Christopher faz uma viagem sentimental à infância dos dois, em Nova Jersey.

Mas é o texto de sua produtora no programa “Sem reservas”, Nari Kye, que transcende o aspecto de guia sentimental para reafirmar a importância da trajetória de Bourdain. Aos 5 anos, Nari emigrou da Coreia do Sul com a família para os Estados Unidos. Com uma educação branca e anglo-americana – “Todas as minhas amigas eram chamadas Jenny e Erin, chamavam os adultos pelo primeiro nome e comiam coisas estranhas como macarrão com queijo” – ela se envergonhava de sua origem. 

Nari sempre se sentiu deslocada, até que Bourdain, em 2012, convocou-a para aparecer na frente das câmeras nos dois episódios que fariam na Coreia. Na viagem, Nari voltou às raízes, levando consigo o chef – que acabou cantando num karaokê pela primeira vez na vida. 





Durante a viagem, a produtora reencontrou-se com o avô paterno, que fugiu do Norte na Guerra da Coreia (1950-1953). De volta a Nova York, descobriu que um programa de TV havia mudado sua vida: “Antes eu era outra pessoa: envergonhada e constrangida por ser diferente… Hoje, se eu tivesse que apontar o que me torna um indivíduo singular, diria que é a minha herança coreana”.

Mesmo que Bourdain não esteja mais presente, há uma “conversa” dele com sua antiga produtora e um comentário que parece óbvio, mas que faz toda a diferença quando viajamos. No mesmo capítulo sobre a Coreia, em um trecho colhido por Laurie sobre a passagem dele por aquele país, quase uma década atrás, o escritor revela: “Muitos dos bons momentos viajando por este mundo estão diretamente relacionados a encontrar alguém para associar ao seu destino, à comida e às memórias que ficarão guardadas para sempre... Na Coreia do Sul, Nari Kye fez isso por mim”.

“VOLTA AO MUNDO: UM GUIA IRREVERENTE”
• Anthony Bourdain e Laurie Woolever
• Intrínseca (464 págs.)
• R$ 89,90 (livro) e R$ 62,90 (e-book)


Nas palavras de Bourdain

Confira trechos do livro nos quais Anthony Bourdain comenta sobre a comida, a população e a arquitetura de diversas cidades

 
  Chateau Marmont, Los Angeles
“Sou extremamente leal e entusiasmado com alguns poucos hotéis que realmente amo no mundo, e não amo nenhum hotel mais do que o Chateau Marmont. O Marmont é um clássico de 1929, que sobreviveu a cinco grandes terremotos e a hóspedes como Jim Morrison, John Belushi, Hunter S. Thompson… Em geral, qualquer um pode entrar, contanto que siga as regras: não dar gritinhos ao ver ou não ver alguém por aqui. Definitivamente, não tirar fotos e não se comportar como um babaca. Você será tratado da mesma forma que o famoso da mesa ao lado.”





  Macau
“E então é hora da carne de porco. A roda, a internet, o copo de cerveja, a guitarra: essas foram invenções importantes que tornaram o mundo um lugar melhor para se viver, mas devemos acrescentar outra inovação – o pão com costeleta de porco. Produto de gênio e uma criação distintamente macauense que vai ficar na história.”

  Restaurante Paul Bocuse, em Collonges au Mont d’Or, França
“Hoje, fui presenteado com os maiores sucessos de uma carreira gloriosa, fabulosa. Pela primeira vez e provavelmente a última, me sentei ao lado do grande homem em pessoa (o chef Paul Bocuse), e Daniel (Boulud) e eu fomos brindados com um menu que, daqui a cem anos, os chefs vão admirar e sorrir com apreço, sentimentalismo e respeito… Nunca mais comerei assim na vida.” 

  Salvador, Brasil 
“É um lugar onde todo mundo é sensual. Não sei se é o álcool, a música ou o calor tropical, mas, depois de um tempo saltitando de um lugar para o outro, vagando por antigas ruas de paralelepípedos, com músicas diferentes vindo de todos os lugares, com festas, gente saindo das casas, uma aglomeração se combinando à outra, a música se misturando, realmente parece que todo mundo está se movimentando ao dom de uma pulsação misteriosa e desconhecida.”

  Toronto, Canadá
“Não é uma cidade bonita. Não mesmo. Quer dizer, eles meio que ficaram com as sobras dos modismos arquitetônicos do século 20. Uma Bauhaus criptofascista. Todas as escolas públicas dos Estados Unidos. Todas as bibliotecas municipais de terceira linha. Sovietic-chic. Mas a fachada de aço que envolve Toronto esconde, na verdade, um interior excepcionalmente maravilhoso e estranho.”

  Viena, Áustria
“Tenho sentimentos conflitantes por qualquer país onde se fala alemão. Viena, capital da Áustria, antiga sede do gigantesco império austro-húngaro e hoje uma cidade com 1,3 milhão de habitantes. Sempre hesitei em vir para cá, sem nenhum bom motivo, na verdade. Preconceito irracional e as consequências de um trauma de infância.”





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