Nos anos 1980, nos ensaios dos Titãs, Paulo Leminski (1944-1989) eventualmente aparecia, ficava assistindo e, diletante, pedia para tocar um pouco de guitarra. A lembrança é do músico e escritor Tony Bellotto, convidado do projeto “Letra em Cena. Como Ler...” para falar sobre a vida e a obra do poeta curitibano.
“Nós todos da geração do rock dos anos 80 fomos muito influenciados pela poesia dele. Foi um privilégio podermos tê-lo conhecido pessoalmente. Ele gostava das nossas músicas, admirava a poesia do Arnaldo (Antunes)”, diz o guitarrista remanescente da formação original dos Titãs.
Bellotto conta que Leminski era um homem muito doce, divertido e espirituoso. “Ele tinha um grande conhecimento, sabia de tudo, e o que não sabia ele chutava. Qualquer coisa que a gente estivesse conversando, ele tinha opinião, tinha algo para dizer a respeito. Ele era vaidoso dessa sabedoria, mas não era arrogante, tinha a capacidade de rir de si mesmo”, diz.
O que mais chama a atenção na obra de Leminski, ele aponta, é a precisão, a habilidade de dizer as coisas da maneira mais simples e, ao mesmo tempo, mais aguda possível. Bellotto diz que sempre foi fascinado pela capacidade do poeta de dizer tanto com tão pouco.
“E a poesia do Leminski também é surpreendente. Ele lutava caratê e, de alguma forma, isso está na obra dele. Você está lendo o poema e, de repente, ele te dá um golpe, tem uma palavra, uma expressão que te pega de jeito”, observa.
Haicai
O poder de síntese e concisão se relaciona também, segundo Bellotto, com o profundo interesse que Leminski sempre nutriu pelo haicai, secular modalidade poética japonesa que consiste num registro curto, de três versos, a partir de observações da natureza, sobretudo. O poeta curitibano foi tradutor e estudioso de Matsuo Bashô (1644-1694), maior expoente do haicai, de quem escreveu uma biografia.
“Eu confesso que comecei a ler haicai por meio de Leminski. Ele inventou uma forma de fazer um haicai brasileiro, um haicai ocidental. Não conheço nenhum outro poeta que trabalhou tanto o haicai quanto ele. Millôr Fernandes fazia também, nessa linha pouco ortodoxa, mas foi a partir do Leminski que, por exemplo, conheci Bashô”, diz Bellotto.
Ele destaca que essa relação com o gênero também foi uma influência forte para os Titãs. “Muitas das nossas letras que buscam uma essência, como ‘Jesus não tem dentes no país dos banguelas’, que é só essa frase que fica sendo repetida a música inteira, vêm daí”, aponta.
Bellotto observa que “ninguém vive de poesia” e que, por isso, Leminski trabalhava também em publicidade, para ganhar um dinheiro extra. “Acho que essa opção era porque na publicidade ele conseguia criar de uma maneira mais próxima da poesia dele. A publicidade também tem essa pegada direta e sintética”, diz.
Para o músico e escritor, Leminski se situa no panteão dos maiores poetas brasileiros do século 20, ao lado de Drummond, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Na opinião do guitarrista, ele ocupa esse lugar graças à sua capacidade de fazer uma poesia de qualidade, sofisticada e, ao mesmo tempo, conseguir ser popular.
“Era um homem muito erudito, poliglota, com um conhecimento enciclopédico e acadêmico, mas que conseguia se comunicar com extrema facilidade. O grande legado dele é mostrar que é possível fazer poesia com qualidade e sem afetação intelectual. É uma poesia que fala com qualquer pessoa”, ressalta.
Canção
Autor de 10 romances, Bellotto diz que sempre manteve uma distância respeitosa da poesia. Ele confessa que, como qualquer pessoa interessada em literatura, já se aventurou por essa seara, mas nunca achou que sua produção fosse digna de divulgação.
“Acho muito difícil. O mais perto que chego da poesia de maneira satisfatória é na letra da canção, que eu entendo como a forma literária mais próxima. Na feitura das letras, existe muito o rigor da poesia, mas com o apoio do ritmo e da melodia”, aponta. “Meu negócio é escrever romance e fazer música. O grande poeta que existe em mim ainda não brotou”, afirma.
Por falar em romance, o mais recente de Bellotto, “Dom” (2020), baseado na história real de Pedro Dom, jovem nascido em uma família de classe média carioca que, aos 20 anos, já era um assaltante procurado pela polícia, tem garantido muitos louros ao autor, mas também alguma dor de cabeça. A obra, apontada por críticos como a melhor de Bellotto, deu origem a uma série brasileira homônima que é, no momento, a de maior sucesso da Amazon Prime Video.
Mas junto com o sucesso vieram a público as contrariedades da mãe de Pedro Dom, Nídia Almeida, e de uma de suas irmãs, Érika Grandinetti, com relação à produção protagonizada por Gabriel Leone – uma versão ficcional do Pedro Dom real, que foi morto pela polícia em 2005, quando tinha apenas 23 anos. As duas tentaram barrar na Justiça a exibição da série, criada e dirigida por Breno Silveira, e sua continuidade, tendo sido derrotadas em duas instâncias.
A origem do livro e da série dele derivada está, na verdade, em um roteiro para um longa-metragem que começou a ser escrito em 2009, quando Luiz Victor Lomba, pai de Pedro Dom, procurou por Silveira e Bellotto. À época, a produção foi cancelada, em razão das negativas da mãe e da irmã.
Em 2015, contudo, a decisão do STF de derrubar a necessidade de autorização prévia de biografados ou parentes de biografados mortos reacendeu a possibilidade da obra, que voltou a ser discutida entre Silveira, Bellotto e Lomba, o principal interessado em contar a história do filho.
“Já escrevi 10 romances, e o ‘Dom’ foi o primeiro baseado numa história real, é algo que eu nunca tinha feito. Quando você está trabalhando com fatos reais, está lidando também com pessoas reais, então realmente tive alguns questionamentos, alguns conflitos em relação a levar adiante esse trabalho”, comenta Bellotto.
Ele pontua, no entanto, que resolveu seguir com o projeto do livro a pedido de Lomba, um homem, conforme diz, que sentia muita culpa por ter perdido o filho, por não ter conseguido tirá-lo do crime. “Ele me dizia que contar essa história o redimiria um pouco da culpa”, afirma.
“A mãe e a irmã se recusaram a ler o roteiro, quando ainda tínhamos o filme em mente, e em momento algum depois daquele projeto inicial quiseram falar comigo, porque esse era um assunto que trazia muita dor a elas”, diz, acrescentando que se compadece, mas ressalvando que acredita não ter agido errado.
“Acho que a história está contada de uma maneira que não denigre em nada ninguém, pelo contrário, depois que o livro foi lançado, muita gente veio agradecer, dizendo que tinha na família uma história parecida. Fico um pouco chateado com essa divergência da mãe e da irmã, mas tenho a consciência tranquila, porque é um trabalho que edifica a vida desse rapaz, que teve uma trajetória muito trágica.”
“Letra em Cena on-line. Como ler Paulo Leminski”
Com Tony Bellotto e leitura de trechos da obra de Leminski por Malu Mader. Nesta terça-feira (16/11), às 20h, com transmissão pelo canal oficial do
Minas Tênis Clube no YouTube
Titãs 40 anos
"Ele (Paulo Leminski) tinha um grande conhecimento, sabia de tudo, e o que não sabia ele chutava. Qualquer coisa que a gente estivesse conversando, ele tinha opinião, tinha algo para dizer a respeito. Ele era vaidoso dessa sabedoria, mas não era arrogante, tinha a capacidade de rir de si mesmo"
Tony Bellotto, músico e escritor
Da literatura para a música, Tony Bellotto diz que seu principal foco agora são as comemorações, em 2022, pelos 40 anos de trajetória dos Titãs. Ele revela que os integrantes da banda estão começando as gravações de um novo álbum de inéditas que vai marcar a efeméride. Juntam-se a isso outras ações em torno dessa data, que também marca a retomada mais efetiva das atividades do grupo, que hibernou durante a pandemia.
“Fizemos para a Net Geo um documentário que deve ser lançado no final deste ano ou no início de 2022, e a nossa biografia, ‘A vida até parece uma festa - Toda a história dos Titãs’ (2002), escrita pela Hérica Marmo e pelo Luiz André Alzer, vai ganhar uma versão atualizada. Além disso, já estamos começando a organizar um show ou uma turnê para celebrar esses 40 anos”, conta. Ele diz que, passado o período de inatividade, a banda está gradualmente voltando aos palcos, com alguns shows em teatros e eventos fechados, para empresas.
No próximo sábado (20/11), os Titãs farão sua primeira grande apresentação, no Anhembi, em São Paulo, em um evento anual da revista “Rolling Stone”. Bellotto diz que o reencontro com o público tem sido melhor do que ele imaginava.
“Já nos primeiros shows que a gente fez, percebi o quanto aquilo estava me fazendo falta, mais do que eu estava conseguindo elaborar racionalmente. Agora que as coisas estão entrando nos eixos, sinto como se fosse a recuperação de uma função vital”, ressalta.
Bellotto revela que para ele e sua família todo esse período, desde o início da pandemia, foi muito difícil e angustiante. Ele conta que o trabalho da banda foi interrompido bruscamente, muitos shows foram cancelados e outros tantos, adiados. “Ainda estamos reagendando e reorganizando compromissos de março do ano passado”, aponta.
“Em tese, a gente estava, com essa pausa, ganhando um tempo ocioso em casa para se ocupar de outras coisas, mas fiquei muito angustiado, não conseguia fazer muita coisa, ficava pensando em trabalhar, compor, escrever, mas, ao mesmo tempo, com a cabeça muito cheia, recebendo notícia de gente próxima doente, de amigos morrendo. Consegui fazer algumas canções, desenvolver algumas ideias durante esse período da pandemia, pensando no disco novo, mas foi um tempo muito pesado, de muita aflição.”