Não é em vão que Hyldon escolheu esta sexta-feira (19/11), véspera do Dia da Consciência Negra, para lançar nas plataformas de streaming mais um single de seu novo projeto, um álbum em que registra parcerias importantes em sua trajetória.
A música escolhida é “Foi num baile black”, que compôs juntamente com os rappers Mano Brown e Dexter, no início da década passada. Com uma letra e uma sonoridade que remetem ao ambiente dos anos 1970, que serviu como porta de entrada para a soul music e o funk na cultura brasileira, a faixa é, segundo Hyldon, emblemática no sentido de reafirmar a cultura e a autoestima do negro brasileiro.
Ele conta que a música foi composta para o álbum “Boogie naipe”, que Mano Brown lançou em 2016. “Fizemos juntos, com o Dexter participando, e o Brown produziu uma versão mais lenta, com a levada de rap no meio, para lançar no disco dele. Eu, inclusive, participei da gravação. Só que esse disco solo dele demorou muito tempo para sair, então, no meio do caminho, eu fiz uma versão própria, com banda, uma levada mais rápida, com naipe de metais, bem dançante, e acabei lançando primeiro, no meu álbum ‘Romances urbanos’, que saiu em 2013. Só três anos depois é que o ‘Boogie naipe’ ficou pronto”, explica o músico.
Ele observa que a regravação que fez agora segue os moldes da que foi registrada em “Romances urbanos”, mais claramente filiada ao que se ouvia nos bailes black, num estilo parecido com o da banda Kool and the Gang, conforme aponta.
Hyldon se recorda que a versão de Brown e a sua acabaram se cruzando em algumas oportunidades, quando um aparecia como convidado no show do outro. “A gente a apresenta fazendo uma primeira parte mais acelerada e uma segunda com a levada mais lenta, com o Brown mandando um rap em cima”, conta.
AMIZADE
A partir dessa composição, segundo conta, ele e o integrante do grupo Racionais MCs passaram a manter uma amizade e uma proximidade grandes. “A gente tem muita coisa em comum, fomos criados por avó, sem pai, viemos de famílias muito humildes, gostamos do mesmo tipo de música, soul, funk. Por conta disso tudo ficamos muito amigos, a gente se fala sempre”, diz, recordando que já participou de muitos shows de Brown em São Paulo e também na edição 2019 do Rock in Rio, quando o norte-americano Bootsy Collins marcou presença no palco.
“Foi num baile black” sucede outras quatro regravações que Hyldon fez a partir de meados deste ano para seu projeto de parcerias. “Eu e minha banda fizemos uma série de lives e resultou disso o registro de mais de 50 músicas. Desse conjunto, estamos extraindo 10 que nasceram de parcerias marcantes”, diz. A primeira lançada nas plataformas, ele destaca, foi “Música bonita”, que fez com Luiz Otávio, parceiro que o acompanha há muito tempo.
“Quis dar esse espaço para alguém que não é tão conhecido do público, mas é um grande parceiro e compositor, um grande amigo. É uma música que se ampara muito nos arranjos vocais, porque a gente tem na banda três músicos que cantam muito bem, então a gente explora bastante os vocais nesse projeto”, diz.
O segundo single do projeto a vir à luz foi “I don’t know what to do with myself”, parceria com Tim Maia. O terceiro foi“Primeira pessoa do singular”, que compôs com Caetano Veloso. E o quarto single, “Velho camarada”, é uma música feita a quatro mãos com Augusto César e que ganhou registro nas vozes do próprio Hyldon e de Tim Maia.
RAP
O autor de “Na rua, na chuva, na fazenda” adianta que em dezembro saem outras duas músicas desse projeto. Uma delas é “O caminho de Santiago”, parceria com Paulo Coelho. A outra, que ele sublinha como um caso à parte nesse conjunto, é fruto de seu encontro com o grupo de rap paulistano U-Clãn. Esse encontro tem rendido frutos, e a música que resultou dele deixa Hyldon particularmente entusiasmado.Ele diz que gosta de se aproximar de jovens artistas e cita, como exemplo, a banda Trio Frito, que chamou para participar consigo da gravação de uma faixa registrada em seu mais recente álbum, “SoulSambaRock”, lançado em 2020. “Sempre que posso boto gente nova no trabalho, porque lá atrás alguém fez isso comigo, no caso, o Tim Maia, que me chamou para tocar guitarra na banda dele quando eu tinha 18 ou 19 anos. Ele me abriu as portas e eu procuro fazer o mesmo com a moçada de hoje”, diz.
Os jovens rappers do U-Clãn, grupo fundado em Campo Limpo, Zona Sul de São Paulo, já o seguiam pelas redes sociais e eventualmente eles trocavam algumas ideias. “Eles me fizeram um convite para participar de uma música. Tem um ditado futebolístico que diz: ‘Quem pede recebe e quem se desloca tem prioridade’. Pensando nisso, eu vivo me deslocando. Eu ouvi a música que esses garotos me enviaram e fiquei muito emocionado, é uma música com um tema muito sério, que fala sobre o crescente número de jovens suicidas, com depressão, não só no Brasil, mas no mundo”, conta.
EXCEÇÃO
Tocado pela música, Hyldon fez uma versão em que “pegou mais leve”, a fim de que ela não ficasse tão para baixo e pudesse passar algo de otimismo. Em seu projeto, a faixa entra com o nome “Gritos da madrugada”. Ele explica que é a única que não é uma regravação, mas acredita que ela está dentro do escopo do projeto, já que, a partir de sua versão, também pode ser considerada uma parceria com o U-Clãn digna de ser exaltada.
“É a exceção, a única música que não vem dessas sessões que fiz com minha banda. Ela é muito emocionante, ficou um negócio lindo. É uma faixa que entrou pela janela. Incluir nesse projeto também é uma maneira de dar voz a esses jovens e jogar luz sobre essa temática tão difícil. Depressão não tem cor, não tem classe social, ela é uma doença que pode chegar a qualquer um. Fiquei maluco com a música. Eu nem ia botar no meu disco, era só para o disco deles, mas ficou tão bonito que resolvi lançar também.”
Voltando aos bailes black, Hyldon diz que a regravação de sua parceria com Mano Brown e Dexter que será lançada amanhã chega junto com um clipe, que foi gravado no ambiente de uma das festas remanescentes de outrora. “É um baile que continua acontecendo, depois de muitos anos, embaixo do viaduto de Madureira, e que tem o apelido de Dutão. Vou lá com alguma frequência. Para fazer o clipe, fomos lá umas três vezes. É um ambiente muito agradável e que tem muito de saudosismo”, diz.
Ele lamenta que esse tipo de manifestação tenha perdido espaço ao longo dos últimos anos, e cita algumas das festas das quais sempre foi frequentador, com o baile promovido pelo DJ Corello na sede do Cordão do Bola Preta. “É um cara das antigas, deve ter a minha idade, e até uns três ou quatro anos atrás ele fez essa festa lá, que era muito legal. Todo mundo muito alinhado, de terno, as mulheres muito bem vestidas e o pessoal todo muito aplicado na dança, elas de salto alto, eles de sapatos bicolores”, diz, citando outros bailes que ficaram pelo caminho, como o Asa Branca e o Chic Show, onde tocou quando ainda integrava a banda de Tim Maia.
ANIVERSÁRIO
Hyldon tem divulgado a conta-gotas os resultados das regravações que vão desaguar no álbum que pretende lançar na data de seu aniversário de 71 anos, em abril do próximo ano, por meio de um podcast que criou a partir da chegada da pandemia. Ele conta que tinha acabado de gravar “SoulSambaRock” e se preparava para os shows de lançamento quando a ameaça do novo coronavírus se impôs e todos os compromissos tiveram que ser cancelados.
“Quase entrei em depressão, porque você fica mais de um ano envolvido com um trabalho, lança e, quando vai divulgar, tudo para. Fiquei desesperado, mas tive essa ideia de começar a fazer o podcast ‘Hyldon em papo de live’, que era a maneira de eu continuar em contato com meu público.”
O podcast tem servido para anunciar as regravações que vem paulatinamente apresentando. “Uns 20 dias antes de lançar o single, eu começo a contar a história da música, a parceria e outras curiosidades. É um espaço de preparação”, aponta.
No podcast em que fala de sua parceria com Mano Brown e Dexter, ele diz que, assim como na festa do DJ Corello, os frequentadores dos antigos bailes black costumavam ir todos muito elegantes, e que isso era uma forma de driblar ou minimizar o preconceito, “porque se a polícia passasse e visse aquele tanto de preto junto, já chegava batendo”. Em sua opinião, esse cenário perdura nos dias de hoje e o atual foco do preconceito racial está nos bailes funk que ocorrem nas favelas e periferias.
“Em 2019 mesmo teve aquele massacre em Paraisópolis. A polícia encurralou um monte de gente, vários morreram pisoteados. No ‘SoulSambaRock’ tem uma faixa que fala disso, o jovem preto e favelado sempre foi e continua sendo a maior vítima da violência policial. Desde os primórdios do samba, quando a polícia chegava dando borrachada, é assim. Agora é pior, é mais violento, os caras chegam e matam. A coisa continua, é o racismo estrutural que se expressa por meio da violência, uma violência que, muitas vezes, parte de policiais negros”, aponta.
Hyldon diz que, de modo geral, essa não é a tônica do seu trabalho, mas sempre que acha necessário toca em temas espinhosos. “Já que a gente tem voz – ou lugar de fala, como se diz hoje –, é preciso usá-la. O meu lugar de fala é a minha música, então tenho mais é que tocar em certos assuntos, trazer à luz uns absurdos que a gente segue vendo por aí. Mas, mesmo assim, sou um cara muito otimista, sempre procuro passar o recado de que pode haver uma luz no fim do túnel”, destaca.