Em 30 de dezembro de 2020, a pesquisadora, professora e escritora Teresa Montero foi ao Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. Em decorrência da pandemia, a instituição, na época, só realizava consultas remotas. Foi aberta uma exceção por causa da especificidade e urgência da pesquisa.
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“À procura da própria coisa” nasce a partir de uma biografia anterior, “Eu sou uma pergunta?” (1999, Rocco) – esta, por sua vez, surgiu do mestrado de Teresa. Há uma década esgotado, o título teria uma versão revista e ampliada em 2020.
No ano do centenário de nascimento da escritora, a editora Rocco lançou 18 títulos em torno de Clarice – novas edições dos livros dela, bem como sua correspondência completa, “Todas as cartas”, em que Teresa também trabalhou. As dificuldades impostas pela crise sanitária e o envolvimento com outros projetos em torno de Clarice a levaram a adiar a nova biografia.
PESQUISAS
O projeto, diga-se, se tornou outro, de muito mais fôlego, graças ao faro da pesquisadora. Além da série de descobertas feitas por Teresa que não constam da primeira biografia assinada por ela, “À procura da própria coisa” também prima por um formato próprio, que foge da tradição do gênero. Traz quatro partes, que podem ser lidas de maneira independente. A autora reverencia o árduo trabalho dos pesquisadores (e das instituições de guarda de acervos e arquivos) na própria costura do livro.
“Não queria me repetir nem repetir o que os outros já falaram. Interessa a mim e ao leitor o que ainda não está dito”, comenta Teresa. Os antigos arquivos da TVE são um dos achados do novo título, talvez o maior. Até então, acreditava-se que a única entrevista televisiva da escritora havia sido em 1977 para Júlio Lerner, da TV Cultura – gravação que, a pedido dela, só foi ao ar depois de sua morte.
A própria digitalização dos fotogramas traz uma história peculiar. Teresa só conseguiu ter acesso ao material fílmico, que transcreveu integralmente no livro (é a entrevista que abre a primeira parte da obra, “Itinerário de uma mulher escritora”), porque teve a colaboração da diretora pernambucana Taciana Oliveira, que lança em dezembro, durante a 16ª edição do Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, o documentário “A descoberta do mundo”.
Os seis minutos do material recuperado (outro tanto se perdeu) estarão no filme, também um projeto de muitos anos. Iniciado em 2015, o documentário tem Teresa como corroteirista – ela começou como consultora e, no decorrer do tempo, assumiu uma função maior.
“O material é realmente uma raridade, que só descobri porque tinha uma referência de um depoimento dela em jornais da época. E guardei isto por cinco anos. É a primeira entrevista para a TV que se conhece dela e, (até então), não havia nada filmado dentro de seu apartamento.”
POLÍCIA
Outra novidade resultante das pesquisas está no capítulo “Clarice Lispector fichada pela polícia política: 1950 e 1973”. A autora transcreveu, ipsis litteris, os documentos. “Biografias anteriores (a dela própria, como também as de Nádia Battela Gotlieb e Benjamin Moser) trouxeram a questão da Clarice na época da ditadura. Muito do material veio do que ela escreveu em crônicas, mais depoimentos de alguns amigos. O que eu trouxe agora foi a fonte primária, que é o que defendo e com o que trabalho.”
A partir dos dois documentos históricos, a autora trabalha hipóteses sobre as razões que levaram a polícia a levantar a ficha da escritora. “Ser fichada no governo Dutra foi uma surpresa. Mas, na época, havia um especial olhar sobre os judeus comunistas russos, e ela tinha naturalidade russa. É uma hipótese sobre a ficha de 1950. Já sobre a do Arquivo Nacional da fase da ditadura também fiz a pergunta sobre o porquê daquele momento. É importante dizer que arquivos não preservam tudo e que essas duas fichas não são certamente as únicas.”
A pesquisa de Teresa a levou a caminhos pouco ortodoxos. O capítulo “Memórias de um caderno de telefones” foi criado a partir da caderneta que ficou sob a posse da sobrinha-neta de Clarice, Nicole Algranti. A partir deste material, Teresa discorre sobre a presença de pessoas próximas à autora – como familiares, amigos e escritores – mas também apresenta curiosidades. Além da célebre Nadir, a cartomante que inspirou a Madame Carlota de “A hora da estrela”, Clarice, pelo que o documento pessoal revela, consultou outras cinco videntes.
“O que acho que consegui com este livro foi ter um olhar biográfico com diferentes pontos de vista”, comenta Teresa. As descobertas supracitadas estão na parte inicial do livro, “Itinerário de uma mulher escritora”. A segunda parte, “Vida-vida e vida literária” destaca a genealogia de Clarice.
Um dos achados desta seção são dois artigos de Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962), sobre Clarice – foram escritos sob o pseudônimo de Mara Lobo. “O livro de Clarice é uma lição límpida, comovida, inteligente, de como se pode amar a literatura” escreveu Mara/Pagu sobre a coletânea de contos “Laços de família” para o suplemento de “A Tribuna”, de Santos, em 1960.
O olhar biográfico convencional, cronológico, da infância até a morte, está na terceira parte, “Eu sou uma pergunta”, que reedita o livro de Teresa de 1999 com um importante acréscimo. O capítulo “Recife, 1976” é novo e recupera a única viagem da autora pela cidade de sua infância. Biografias anteriores apenas delinearam brevemente a passagem de Clarice no ano anterior à sua morte.
Foi também por meio de Taciana Oliveira que Teresa chegou ao guia que esteve com Clarice 45 anos atrás. Hoje na casa dos 70 anos, Augusto Ferraz era um jovem poeta de 20 e poucos quando, em 1974, fez contato com a escritora. Viajou por três ocasiões ao Rio de Janeiro e também se correspondeu com ela – algumas missivas estão no livro “Todas as cartas”.
“A hora da estrela”, que acompanha a migrante nordestina Macabéa no Rio de Janeiro, foi gestada neste período. Por isto a viagem a Recife é considerada “fundamental” pela biógrafa.
Sobre o romance, um dos títulos mais populares de Clarice, Teresa faz uma correção histórica. “Todo mundo diz que ‘A hora da estrela’ foi o último livro de Clarice. Mas não. Foi ‘Quase de verdade’, para crianças.”. Resumo da história: Paulo Rocco fundou a editora que leva seu sobrenome em 1975. Em 1977, Clarice lhe deu o livro infantil para publicar.
“Na entrevista da TV Cultura ela fala que terminou de escrever a novela (‘A hora da estrela’) e que estava meio oca, então tinha começado a escrever uma história para crianças. Ela disse isto em fevereiro de 1977 e morreu em dezembro. Fiquei perplexa quando me dei conta disto”, conta Teresa. “Quase de verdade” foi lançado postumamente, em 1978.
A quarta parte da obra dedica-se a mapear os caminhos de Clarice no Nordeste, em especial Pernambuco e Alagoas. A caprichada edição de “À procura da própria coisa” traz importante material iconográfico. Um caderno de fotos contém 16 imagens – 13 delas são inéditas, como as que ilustram esta página.
Além disto, é publicada pela primeira vez em livro imagem da tela “Matéria da coisa”, que Clarice pintou e com a qual presenteou sua comadre, a artista plástica Maria Bonomi. De pequena dimensão (33x24cm), é uma das primeiras telas pintadas por Clarice, das 16 em que ela trabalhou, entre março e setembro de 1975.
Com a sensação de missão cumprida, Teresa afirma que termina, com este livrão, sua obra em torno de Clarice. “Dediquei a minha vida até o presente momento a ela como uma missão mesmo, um presente. Como pesquisadora, quero parar com esse livro. Deixo minhas pesquisas para aqueles que quiserem ampliar o material. Acho que tem que haver uma renovação no campo de Clarice, pois sempre vemos as mesmas coisas de ‘Clarice, o mito’. ‘Eu sou uma pergunta’ abriu um ciclo para mim. Nunca pensei que uma editora iria me convidar para organizar obras em torno de Clarice. E outras pessoas, mais jovens, podem trazer novas abordagens”, diz.
“À PROCURA DA PRÓPRIA COISA: UMA BIOGRAFIA DE CLARICE LISPECTOR”
.Teresa Montero
.Rocco (768 págs.)
.R$ 119, 90 (livro) e R$ 59,90 (e-book)
ENSAIOS
A editora Fósforo lança no próximo dia 25/11 o volume "Um século de Clarice Lispector: Ensaios críticos" (416 páginas). Com organização das professoras da USP Yudith Rosenbaum e Cleusa Rios P. Passos, o livro traz 24 ensaios sobre a escritora, assinados por escritores e críticos literários. A publicação é um desdobramento do Colóquio Internacional: Cem Anos de Clarice Lispector, realizado no ano passado por iniciativa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. O livro será vendido a R$ 99,90; o e-book, a R$ 59,90.
CRÔNICAS
A editora Relicário iniciou a pré-venda de “A vertical das emoções – As crônicas de Clarice Lispector”, de Georges Didi-Huberman,cujo lançamento está previsto para o próximo dia 30/11. Filósofo e historiador da arte, o autor proferiu conferências sobre as crônicas de Clarice Lispector na Universidade de Zurique, em 2019, dentro do ciclo dedicado a autores brasileiros organizado pelo professor Eduardo Jorge de Oliveira. “A vertical das emoções" reúne essas conferências. O volume sai por R$ 33,90 e está à venda no site da Relicário Edições.