É difícil encontrar um único gênero musical para definir o álbum "Caco de vidro", da cantora e compositora Duda Brack, recém-lançado pelos selos Matogrosso e Alá. Composto por 11 faixas, o trabalho abarca estilos como pagode baiano, cúmbia, folk, funk, rock e pop.
No esforço de tentar defini-lo, talvez seja possível tratá-lo como um disco de ritmos latino-americanos. Ainda assim, essa definição parece insuficiente, e é aí que o próprio título do trabalho (e também nome de uma das canções presentes nele) começa a fazer sentido.
"Eu tenho um gosto musical muito diverso", explica a artista, que assina a produção do disco junto com o músico Gabriel Ventura. "Quando comecei a trabalhar no meu disco, tinha acabado de voltar de uma viagem ao México. Então fui muito atravessada pela cultura de lá. Mas sempre ouvi muita música latino-americana e a minha intenção era fazer um disco carregado de brasilidade. Devagar eu fui entendendo qual seria o caminho a ser percorrido e, junto com o Gabriel, eu fui descobrindo."
A jornada de Duda até "Caco de vidro" envolve um longo período sem lançar trabalhos solo. Nascida em Porto Alegre e radicada no Rio de Janeiro, ela lançou seu disco de estreia, "É", em 2015. No ano seguinte, foi acometida por uma crise de depressão e cogitou desistir da carreira artística. A isso somaram-se desilusões amorosas e relações abusivas.
Após participar de alguns projetos em banda, como a Primavera nos Dentes, que prestava tributo aos Secos & Molhados, ela retomou, em 2018, a vontade de produzir um trabalho próprio.
"Fiquei muito tempo relutando em começar esse processo. Precisava me organizar. O meu primeiro disco foi muito intenso, ao mesmo tempo em que foi feito de uma forma muito despretensiosa. E aí a coisa foi acontecendo e eu não soube lidar muito bem com a proporção que tudo tomou", ela explica. "Por isso já existia uma certa cobrança de que lançasse algo novo. Mas eu precisei amadurecer muito, em muitos aspectos, como artista e como mulher."
''Fiquei muito tempo relutando em começar esse processo. Precisava me organizar. O meu primeiro disco foi muito intenso, ao mesmo tempo em que foi feito de uma forma muito despretensiosa. E aí a coisa foi acontecendo e eu não soube lidar muito bem com a proporção que tudo tomou. Por isso já existia uma certa cobrança de que lançasse algo novo. Mas eu precisei amadurecer muito, em muitos aspectos, como artista e como mulher''
Duda Brack, cantora e compositora
CONVIDADOS
''Fiquei muito tempo relutando em começar esse processo. Precisava me organizar. O meu primeiro disco foi muito intenso, ao mesmo tempo em que foi feito de uma forma muito despretensiosa. E aí a coisa foi acontecendo e eu não soube lidar muito bem com a proporção que tudo tomou. Por isso já existia uma certa cobrança de que lançasse algo novo. Mas eu precisei amadurecer muito, em muitos aspectos, como artista e como mulher''
Duda Brack, cantora e compositora
A construção do álbum começou a ganhar corpo de fato em 2019. Ele estava previsto para sair no início 2020, mas a pandemia obrigou Duda Brack a mudar os planos. Isolada em casa, ela se aproveitou da agenda paralisada, tanto dela quanto de seus pares, e chamou uma série de convidados para participar do registro.
A lista inclui a banda BaianaSystem, o grupo de percussão Os Capoeira, o grupo norte-americano Hypnotic Brass Ensemble e os músicos Elisio Freitas, Cuca Ferreira (saxofonista da banda Bixiga 70), Maycon Ananias e Lúcio Maia.
Mas a presença mais ilustre do trabalho é mesmo a do cantor Ney Matogrosso, que canta na faixa "Ouro lata", música feita por Duda sob inspiração do livro "As veias abertas da América Latina" (1971), do escritor uruguaio Eduardo Galeano.
"Quando ele [Ney Matogrosso] conheceu o trabalho da Primavera nos Dentes, a gente logo se conectou e viu que, entre a gente, rolava uma identificação. Depois disso, ele me chamou para lançar o disco pelo selo dele e eu retribuí o convite chamando-oe para cantar em uma das músicas", ela conta.
"'Ouro lata' é uma música que escrevi pensando nele. A letra faz uma crítica a essa degradação ambiental que estamos vivendo. O BaianaSystem, que eu amo muito, assina a produção dessa faixa. Eles são uma das bandas contemporâneas que mais me interessam."
O encontro de gerações também está presente na lista de compositores de "Caco de vidro". De um lado, estão os contemporâneos Chico Chico (que divide com Duda a autoria da música "Saída obrigatória"), Sandro Dornelles (autor de "Esmigalhado") e Bruna Caram (autora de "Toma essa"). Do outro, está a cantora e compositora Alzira E, o músico e produtor Itamar Assumpção (1949-2003) e o músico, poeta e cantor cubano Silvio Rodriguez.
Da parceria entre Alzira e Itamar, Duda Brack regravou "Man", canção lançada há 30 anos pela cantora e compositora no álbum "Amme" (1991). Do repertório de Silvio Rodriguez, Duda pinçou "Sueño con serpientes", lançada no disco "Días y flores" (1975). No Brasil, a música ficou famosa na voz de Milton Nascimento, que a incluiu no repertório do álbum "Sentinela" (1980). Ambas soam muito bem colocadas na amálgama de ritmos e sonoridades de "Caco de vidro".
ESTILHAÇO
Questionada sobre a mensagem que o trabalho carrega, Duda Brack o define como a "narrativa do estilhaço". "Todo fim de ciclo é o início de outro. Para mim, isso é uma verdade muito forte, principalmente no sentido emocional. Não tem como construir algo novo se você opera através do passado. Eu percebi que a gente precisa quebrar essas engenharias de poder que estão aí impostas para abraçar o novo. Foi o que tentei explorar na narrativa desse trabalho. Demorei para chegar nesse entendimento. Todo o processo desse disco foi como se eu estivesse tentando morder o meu próprio rabo."No álbum, não são raros os momentos em que Duda discute abertamente questões feministas, como no caso da música "Macho rey", composta por Ian Ramil e Juliana Cortes. Na letra, estão descritos padrões de comportamento masculinos problemáticos. Segundo a cantora e compositora, tratar de temas como esse foi "inevitável".
"Desde 2018, o cerco foi fechando tanto. Eu estava extremamente incomodada. É como a Nina Simone disse: 'É dever do artista refletir o seu tempo'. Infelizmente, estamos vivendo tempos extremamente obscuros. Como eu não vou falar sobre isso? Mas tentei abordar esse assunto de uma forma minimamente leve. Queria que fosse vibrante para que as pessoas fizessem uma ponte entre a reflexão e a liberdade", ela explica.
Para a cantora e compositora, a pandemia foi um momento de amadurecimento, ao mesmo tempo em que foi "a gota d'água" para o país. "E, como artista, tive o privilégio de parar e pude continuar me comunicando com o meu público, marcando presença e levando música para as pessoas. Eu me sentia viva por causa disso. Os nossos problemas começam antes da pandemia. Com ela, a gente perdeu muito o poder de ação e reação. Mas os problemas já estavam aí".
Criativamente, também foi um momento fértil. Além de produzir e finalizar "Caco de vidro", nos dias em casa Duda Brack conseguiu compor músicas para um terceiro disco, a ser lançado no futuro. "Eu já tenho o repertório fechado. Agora que entreguei esse, quero começar a trabalhar no próximo e lançá-lo quanto antes. Estou numa fase boa de produção, então quero aproveitar", ela conta.
Antes disso, ela pretende cair na estrada. Por enquanto, os shows de lançamento estão anunciados para São Paulo. Mas, em breve, Duda Brack pretende desbravar outras capitais, incluindo Belo Horizonte.
"Quando paro para pensar que passei quase dois anos sem subir num palco, não sei como eu me aguentei. Preciso disso e estou muito feliz em ver que as pessoas estão ansiosas por esse tipo de contato com a arte."
“CACO DE VIDRO”
• De Duda Brack
• 11 faixas
• Matogrosso/Alá
• Disponível nas plataformas digitais