Marília Mendonça amou o som dele – e registrou isso no Twitter, em 2019, quando ouviu a romântica “Se eu não te cantar”, faixa do disco “Padrim”. Maísa Silva fez meme inspirado em “Se tá solteira”, enquanto se preparava para apresentar o Teleton 2021 no SBT/Alterosa. No YouTube, fãs criaram um vídeo de Mano Brown, dentro do carro e de olhos fechados, curtindo a romântica “Não dá para explicar”.
O rapper mineiro Fabrício Soares Teixeira, o FBC, volta a fazer barulho – e muito – com seu novo disco, “Baile”, parceria com o jovem beatmaker Vhoor (leia-se Vitor Hugo de Oliveira Rodrigues). Dez faixas oferecem uma festa dançante de 27 minutos a este estressado planeta pandêmico.
Criado no Bairro São Benedito, em Santa Luzia, morador de ocupação por anos e cidadão apaixonado por sua favela, a Cabana do Pai Tomás, FBC comanda o rolê ao lado de Vhoor, garoto de Venda Nova que faz um som inacreditável em seu notebook. Baile globalizado o destes dois, diga-se de passagem. Lançado em 15 de outubro, “Se tá solteira” já passou de 50 milhões de views no Tik Tok. Neste fim de semana, o single ocupava o 15º lugar no ranking dos virais mundiais do Spotify, o 14º nos virais de Portugal e o 8º ranking nacional.
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O “resgate” do miami bass noventista nem é tão resgate assim. Afinal, Belo Horizonte ama esse ritmo, garante FBC, dizendo que ele se manteve firme na cidade até por volta de 2010, ao contrário de outras regiões do país. Trilha sonora da Região Norte, animou muito baile nas quadras do Vilarinho, em Venda Nova – aliás, colocadas à venda este ano.
“Baile”, como o nome diz, é um tributo aos bailes funk das favelas de BH e à cultura gerada na periferia da capital. Letras falam da Cabana do Pai Tomás, Gameleira, Nova Cintra, Venda Nova, Frei Gaspar, Aglomerado da Serra, Morro das Pedras. O ritmo dançante embala refrões que grudam nos ouvidos. Você já ouviu “se tá solteira/ vamos ficar de casal”? Pode apostar: é só questão de tempo...
No baile de FBC e Vhoor, a alegria é auto de resistência, enquanto letras falam de violência e corrupção policial, de garotos no crime, do apartheid social que condena jovens à marginalidade. “Todo dia, essa é a rotina do morro/ O poste mija no cachorro”, canta Fabrício.
O funk-rap da dupla, ao contrário de boa parte do que se ouve no gênero, não é misógino nem machista. De cara, a primeira faixa do disco avisa: “Geral consciente/ Em mulher não põe a mão/ Mulecada tá ligada/ Sim é sim, não é não”
ÓPERA-DRAMA
Cronista perspicaz da periferia, Fabrício classifica seu novo trabalho como “ópera-drama”. As canções são protagonizadas pelo trabalhador Pagode, pai de família, morador da favela e dançarino do Baile da União da Fé e da Força, a UFFÉ; seu amigo, o traiçoeiro Paulinho Falador; e Jéssica, amor platônico de Pagode. Festa e tragédia marcam a vida dos três.
O novo álbum é continuação de “Outro rolê”, de FBC e Vhoor, lançado em fevereiro. O EP também é crônica da periferia, mas com outra sonoridade. Traz o clima meio sombrio do drill, outro subgênero do rap, enquanto “Baile” é solar.
Detalhes prosaicos do cotidiano, como os pisantes da moçada, inspiram FBC. “Meu bairro/ tão violento e simplório/ Meu tênis aqui vale um velório”, canta ele em “Superstar”, faixa de “S.C.A” (2018), seu primeiro disco solo. Em “Baile”, chinelo virou canção: “Os cria da Vip vai de Kenner/ Nove em dez no baile tão de camisa do Messi/ Cyclone, bigodim finim/corrente Juliette/da mesma cor pra combinar com o Kenner”.
“Nunca tive tênis”, conta FBC, revelando que chinelo foi o seu calçado até muito recentemente. Filho de família humilde, trabalhou como pedreiro (ergueu a própria casa na ocupação, para onde se mudou quando o aluguel apertou), vendeu água nas ruas, descobriu o rap quando uma fita cassete do Racionais MCs surgiu em sua casa. O talento do frequentador dos bailes do Vilarinho foi revelado no Duelo de MCs.
Com suas experimentações, FBC e Vhoor se propõem a buscar um novo som – contemporâneo e, ao mesmo tempo, cria da tradição hip-hop. A dupla faz questão de pôr a marca de BH nessa história. Nada soa como nostalgia cover nesse “Beagá Bass” dos dois. A batida do tamborzão está lá, mas cercada de instrumentais lapidados pelo “ouvido absoluto” de quem está conectado, via internet, à riqueza musical do planeta.
Vhoor conta que seu drill bebe na fonte londrina, mas ganhou elementos afro-brasileiros, do coco, da macumba. FBC se empenha em criar algo novo que junte rap e funk. “Falo muito pro Vhoor: a gente vai misturando até formar outra coisa, outra cor, outra textura”, diz.
Rapper respeitado nacionalmente, Fabrício é fundador do coletivo DV Tribo ao lado de Djonga (com quem fez shows durante muito tempo), Coyote Beatz, Clara Lima, Hot e Oreia. Lançou os álbuns solo “S.C.A” (2018) e “Padrim” (2019), que ganhou disco de ouro da distribuidora ONErpm.
PIQUE NA PANDEMIA
A pandemia não tirou o pique dele: em 2020, lançou “Best duo” com Iza Sabino, SMU e convidados, e “FBC no estúdio Showlivre (ao vivo)”. Este ano, mandou para as plataformas “Outro rolê” e “Baile”. A convite do selo europeu WRM, que lançou ''Outro rolê'', gravou vídeos na Suíça.
“Muita coisa do funk carioca foi escrita aqui em Belo Horizonte”, afirma Fabrício. E foi mesmo. FBC se surpreende ao saber, pela repórter, que “É som de preto/ de favelado/ Mas quando toca/ Ninguém fica parado”, o refrão do hit de Amilcka e Chocolate que virou ícone do batidão, veio do mineiro MC Baby – como ele, cria do Vilarinho. Aliás, Vhoor morava em frente às quadras e se cansou de ver os tios se arrumando para dançar lá.
Pesquisas desse jovem beatmaker estão ancoradas nas novidades da eletrônica. Ele “milita” na plataforma colaborativa SoundCloud, que reúne africanos, latinos, “imigrantes de todos os cantos do mundo”, explica. Seu som tem atabaques ancestrais também.
Vhoor diz que BH tem tradição de sobra para nutrir seu projeto com FBC. Destaca as características peculiares da música gerada na cidade, referência tanto do metal (com as bandas Sarcófago e Sepultura) quanto da MPB (Clube da Esquina).
O beatmaker já chamou a atenção do jornal inglês The Guardian com suas criações mesclando funk, eletrônica e sonoridades afro-latinas. Sua criação pode ser ouvida nas rádios inglesas BBC6 e BBC1Xtra; na KCRW, em Los Angeles; e na KEXP, em Seattle. Vhoor tem 700 mil ouvintes no Spotify. Fabrício soma 900 mil.
MALAWI SOUND
Antenadíssimo nas novidades que descobre na internet, o entusiasmado FBC mostra no celular o som do Malawi Mouse Boys, formado por trabalhadores humildes africanos que constroem instrumentos com latinhas de Coca-Cola e correntes de bicicleta. Adora os timbres ancestrais vindos daquela cultura tribal.
Por falar em ancestralidade, Fabrício adapta os cantos de trabalho que ouviu da avó, descendente de escravos, para sua própria voz. Sabe de cor cânticos das colheitas de cana-de-açúcar, café e milho que conheceu em documentários de Leon Hirszman.
Um olho na tribo, o outro no planeta. O descolado FBC bolou campanhas bem-sucedidas para divulgar seu som. Quando divulgou “Padrim”, pediu a deus e o mundo para postar no próprio perfil “15/11 confia” (data de lançamento do álbum). Marília Mendonça, Mano Brown, Whindersson, Emicida, Maísa e Felipe Neto apoiaram a campanha. Até o papa Francisco recebeu o apelo do rapper mineiro. Ainda não respondeu, mas... Nada veio por milagre na carreira deste moço dos 50 milhões de views no Tik Tok.
“BAILE”
. Disco de FBC e Vhoor
. 10 faixas
. Participação de Mac Júlia, Mariana Cavanellas, Djair Voz Cristalina, Fern e Uana
. Gravação: DJ Spider, Xaga e Vhoor
. Produção executiva: Rafael Barra
. Disponível nas plataformas digitais