Com mais de duas décadas de investimento na indústria do entretenimento e em educação, a Coreia do Sul virou uma potência socioeconômica. Por meio desse soft-power, a cultura sul-coreana tem se tornado uma moeda de negociação para o país, com influência dos costumes à política externa. Esse fenômeno é conhecido como Hallyu, expressão que define a onda cultural sul-coreana que vem se espalhando pelos quatro cantos do mundo.
O k-pop domina as plataformas de streaming de música, com destaque para os grupos Blackpink e BTS, que se tornou o primeiro sul-coreano indicado ao Grammy, em 2021, e a alcançar o topo da parada musical norte-americana HOT 100 da Billboard. Já os k-dramas, os dramas televisivos do país, vêm se consolidando como um estilo único de produção audiovisual.
O drama “Round 6”, cujo nome oficial é “Squid Game”, por exemplo, é a obra original da plataforma de streaming Netflix mais assistida do mundo. Enquanto isso, o filme “Parasita” provou a qualidade das produções sul-coreanas por ser um sucesso de público e crítica ao vencer o Oscar de Melhor Filme em 2020.
Para além do audiovisual e da indústria da música, a Coreia do Sul divulga a cultura do país e reforça sua influência em outros aspectos socioeconômicos, como culinária, turismo, estética, política e moda. Uma façanha para um país que, há apenas 20 anos, se encontrava em um contexto sociopolítico e econômico totalmente diferente.
Influências japonesas e norte-americanas
No século 20, em decorrência da Segunda Guerra Mundial e da Guerra das Coreias, a Coreia do Sul viveu sob o domínio japonês e, posteriormente, o norte-americano. O país se encontrava em uma crise socioeconômica e em eixos de tensão política, principalmente no Leste Asiático, com a China e o Japão, e a Coreia do Norte, em decorrência da separação das Coreias.
Naquele contexto, o país passava por uma transformação, seguindo as características da cultura norte-americana, como explica a comunicóloga Aline Santana, mestre em Consumo, Cotidiano e Desenvolvimento pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Mas, em 1993, após um período de governos conservadores, o presidente Kim Young-sam propôs a criação de uma “Nova Coreia”. “A Coreia do Sul investiu em cultura e em educação para se firmar como nação e fazer parte do mercado internacional”, explica Aline. Foi o início do fenômeno Hallyu.
A onda cultural sul-coreana é resultado da “hibridização cultural”, que é soma de culturas diferentes que resultam em uma nova ou uma conversão cultural, quando uma cultura inclui características de outra com quem teve contato, das características culturais sul-coreanas com as norte-americanas. Essa mistura faz com que aspectos da cultura dos Estados Unidos sejam vistos nas produções sul-coreanas, como versos em inglês em músicas de k-pop.
Com uma expansão para diversos campos da economia e da indústria de entretenimento, a Hallyu se tornou uma forma de a Coreia do Sul exercer influência sobre outros países. O fenômeno tem a característica do chamado soft power, que é quando uma política social ou país difunde a sua cultura de forma indireta para influenciar comportamentos sociais e atingir seus interesses. “A Hallyu chega com muita sutileza, aos poucos, e já alcançou fãs e seguidores por diferentes locais do mundo”, afirma Aline
Uma revolução nascida na TV
Os k-dramas foram os primeiros produtos culturais sul-coreanos a se espalharem pelo mundo, começando pela Ásia, principalmente Japão e China. Com inspiração em dramas asiáticos, a produção tem uma linguagem audiovisual única. “Os k-dramas são k-dramas. Não é série, não é novela, não é um seriado. É um formato muito particular mas que não se encaixa em nada que já existe”, comenta a fundadora da revista KoreaIn, Naira Nunes. “Pode se aproximar mais em um formato de uma minissérie brasileira, dessas de 12 episódios, como as que a TV Globo faz”, compara.
A redatora Carol Akioka, também da KoreaIn, compara o modelo audiovisual dos dramas sul-coreanos com as novelas brasileiras. “Enquanto nas obras brasileiras têm personagens que nunca se encontram, os dramas têm núcleos próximos”. Segundo ela, há dois modelos de k-drama: os mais curtos, com a média de 16 a 20 capítulos, e os mais longos, com 60 a 100 episódios.
Esse segundo grupo normalmente é transmitido na TV pela manhã e tem como público alvo donas de casa e idosos. Já os mais curtos fazem mais sucesso no exterior, como “Round 6” e “My name”.
Sucesso nas telas e nas ruas
No início dos anos 2000, os k-dramas começaram a fazer muito sucesso. Em 2002, com o incentivo do governo em produções culturais, o drama “Winter sonata” se popularizou em toda a Ásia, principalmente no Japão, com atores são tratados como grandes astros, tanto por jovens, quanto pelos mais velhos.
Na Ásia, o acesso a produções sul-coreanas era facilitado pelo governo. “Já era de interesse da Coreia atingir esses países do leste asiático. Então, os k-dramas passaram na TV, aberta ou fechada, sempre com legenda. A resistência das produções na Ásia foi bem menor em comparação com o ocidente”, explica Naira.
No ocidente, os k-dramas começaram a se popularizar após o sucesso dos grupos de k-pop. A pirataria on-line contribuiu para que essas produções para TV chegassem e se espalhassem a partir de fãs da cultura asiática.
No ocidente, os k-dramas começaram a se popularizar após o sucesso dos grupos de k-pop. A pirataria on-line contribuiu para que essas produções para TV chegassem e se espalhassem a partir de fãs da cultura asiática.
Com a recente popularização das plataformas de streaming, os dramas alcançaram um novo público. “As dublagens ajudaram muito os k-dramas a se aproximarem de pessoas do dia a dia. Não só k-popper ou fãs da cultura sul-coreana. Mas aquelas pessoas que estão na Netflix e ficam interessadas em acompanhar”, comenta Carol.
Ponte cultural após as guerras
Na Ásia, a Hallyu ajudou na comunicação entre os países asiáticos, que ainda vivem em tensão política devido às guerras. “A ascensão dos k-dramas na Ásia foi um começo para que a Coreia começasse a se abrir para outros países. Não só culturalmente, mas para conversas políticas”, explica a redatora Carol Akioka.
Essa abertura se expandiu para outras áreas do entretenimento como uma tática de aproximar os consumidores de outras nacionalidades para a cultura sul-coreana e também facilitar a comunicação entre os países. Um tipo de embaixadores culturais para mediações que vão muito além do campo do entretenimento.
Modelo de treinamento para artistas
Com o crescimento da influência sociopolítica dos profissionais de entretenimento, a Coreia do Sul sentiu a necessidade de moldar a imagem dos artistas, que são conhecidos como ‘idols’. O termo, inspirado em um modelo japonês, ganhou um significado diferente de ídolo ou mesmo astros, como popularmente conhecemos no Brasil.
Isso porque ser um idol muitas vezes está mais relacionado ao carisma e ao prestígio entre os fãs que ao próprio talento artístico. Inspirado na cultura ‘idol’ japonesa, as empresas de entretenimento sul-coreana criaram o “sistema de treinamento”, onde é trabalhado vários aspectos. Da interpretação ao canto, da moda ao marketing, do palco aos cinemas. Um treinamento completo.
“A Coreia sempre se importou muito com a imagem a ser apresentada. Os idols são o ‘cartão de visita do país’”, explica o jornalista e YouTuber, Felipe (Fefo) Caires, que trabalha com conteúdo relacionado à cultura sul-coreana nas plataformas digitais. “Se você fuma, se você tem vários namorados, você não é bem-visto com bons olhos, por exemplo”, explica.
Casa de grandes artistas
Conforme o jornalista, a empresa SM Entertainment, fundada em 1995, foi uma das pioneiras nesse sistema de treinamento e ajudou a solidificar a prática na indústria. A corporação é casa de grandes grupos e solistas de k-pop, como a BoA, S.E.S, H.O.T, Shinee, Girls Generation, EXO, Red Velvet, NCT e aespa.
Mas esse modelo de sucesso comercial traz consequências. Artistas já falaram abertamente sobre saúde mental, luta contra a depressão e ansiedade, como ocorreu com a cantora TaeYeon, solista e líder do Girls Generation.
Essa padronização dos artistas teve um outro impacto, que foi a dificuldade de identificação com o público. Mas, segundo Felipe, há uma mudança ocorrendo. A Giselle, integrante do grupo Aespa, vem mostrando sua personalidade em programas de variedade e publicações on-line.
“Ela é uma idol diferente, fala o que pensa. Ela é espontânea, gente como a gente. Eu me reconheço nela. E antes no k-pop era difícil a gente se identificar”, comenta. Outro exemplo é a idol Bibi, que tem um som mais indie/folk e discute abertamente saúde mental, sexo e uso de drogas em suas canções.
Culinária e turismo como tendência
Outros aspectos culturais sul-coreanos mostrados nas produções audiovisuais também passaram a atrair a atenção de fãs ocidentais. É o caso da culinária e da moda, além do turismo. E o reflexo tem sido visto no aumento da abertura de restaurantes sul-coreanos no Brasil e na compra de viagens para a Coreia do Sul.
“Você vê aquele challenge do ‘miojo’ super apimentado que ficou muito popular”, comenta a redatora Carol Akioka, em referência a um desafio on-line onde as pessoas comiam macarrão instantâneo sul-coreano. “O mukbang (vídeos de pessoas comendo quantidades enormes de comidas) é coreano. E, de repente, você olha para YouTube e você vê pessoas de milhares de lugares do mundo fazendo mukbang”, comenta a fundadora da revista KoreaIn, Naira Nunes.
Moda e estética em alta
Outra influência da Hallyu é na indústria da moda. Como os idols trabalham com a imagem, o estilo e a estética são extremamente relevantes para a Coreia do Sul e o mundo. Assim, se tornam uma ferramenta de trabalho.
“O k-pop é formado para impactar visualmente, seja a maquiagem, a roupa e as unhas. Então, quando um jovem vê, ele quer copiar o estilo”, comenta Naira. Por isso, muitos artistas sul-coreanos têm contratos com grandes marcas de roupas de cosméticos, como a Jennie, do Blackpink, que é embaixadora global da grife Chanel.
Além de idols, estilistas sul-coreanos têm deixado marca no mundo da moda, como Lee So Hye, que veste artistas como Ariana Grande e até a diva pop brasileira Anitta, que usou um de suas roupas durante um evento no exterior.
*Estagiária sob supervisão do subeditor Rafael Alves
*Estagiária sob supervisão do subeditor Rafael Alves