Uma mulher salta do 18º andar de um transatlântico em alto mar e cai no veleiro de outra mulher; elas, então, resolvem navegar juntas em direção a um lugar desconhecido no mapa. É a partir dessa premissa, carregada de elementos do realismo fantástico, que se desenrola o espetáculo “Sal”, concebido pelo Margem – Coletivo de Investigação Teatral, que cumpre temporada de pré-estreia a partir desta quinta-feira (2/12) até o próximo domingo (5/12), no Galpão Cine Horto, com sessões sempre às 20h.
Com direção e dramaturgia de Rita Clemente, a montagem é um desdobramento da cena curta “Urra”, apresentada no festival A-Mostra.Lab em 2018, e que marcou a estreia do Margem, formado naquele ano pelas atrizes Sâmylla Aquino e Gabriela Fernandes.
O que “Sal” traz daquela experiência performática apresentada há três anos é a investigação acerca das relações entre música e teatro. É justamente essa relação que justificou o convite feito a Rita Clemente para colaborar no processo, já que essa interseção é algo que ela pesquisa desde o início dos anos 2000.
“A música modifica o espaço e o tempo em que a gente está, então tem uma interferência direta na encenação”, diz Gabriela, destacando que a trilha sonora original, composta por Patrícia Bizzotto, também cumpre essa função.
“A Sâmylla canta e toca guitarra em cena, e isso promove modificações no tempo e no espaço do espetáculo. Além disso, tem um efeito poético, lírico, que o espetáculo propõe com esses elementos musicais”, afirma.
Sâmylla, que além de atriz é musicista, cantora e compositora, com um trabalho autoral, lembra que “Urra” era uma cena performativa, um show com concepção cênica no qual música e teatro dialogavam de maneira verticalizada.
LONGA DURAÇÃO
“Sabíamos que era possível explorar isso mais, então, no caso de ‘Sal’, que é nosso primeiro espetáculo de longa duração, já partimos desse lugar. A música entra com o papel de propor passagens temporais. Ela dá a ideia da passagem do tempo, da navegação, do movimento e da trajetória”, diz.
Ela ressalta que as pesquisas de Rita contribuíram para abrir novos caminhos nesse processo de investigação. A reconhecida atriz, diretora e dramaturga mineira, que tem vasta experiência em teatro e incursões em televisão e cinema, diz que já tinha assistido a “Urra” quando foi convidada para dirigir o novo espetáculo que Gabriela e Sâmylla estavam querendo desenvolver, e que se identificou com a proposta.
Rita tem interesse no equilíbrio de forças no diálogo entre essas duas linguagens autônomas – a música e as artes cênicas – juntamente com o texto, que também aparece como uma terceira linguagem independente. “Na ópera há uma certa hegemonia da música, parte-se dela. Mesmo que a gente tenha um libreto que sinaliza contextos, quando a música chega é por ela que a gente deve se balizar. No teatro a música não é hegemônica, não é uma voz que se sobrepõe às demais. Esse é o barato da relação, entender que existem essas duas linguagens e perceber que há elementos comuns a ambas que se encontram na cena. A busca constante por esse diálogo está presente em ‘Sal’ e está presente no meu processo”, aponta.
VELEIRO
Esse diálogo, de certa forma, espelha o que acontece com as duas personagens a partir do encontro no veleiro. A dramaturgia acompanha as trajetórias dessas duas mulheres que ficam juntas no meio do oceano. Num cenário composto por um grande veleiro e um mar de sacolas plásticas, as personagens atravessam uma jornada de autoconhecimento, partilhando suas inquietações íntimas, suas vivências e suas histórias, na busca de liberdade.
Rita aponta que as questões levantadas em “Sal” por meio do diálogo das personagens são motivadas, primeiramente, pelo fato de ser um trabalho desenvolvido por três mulheres. “Quando fui solicitada a fazer a dramaturgia, quis criar a partir de questões que nos eram comuns como mulheres. Uma delas é a liberdade; a outra é a forma como a sociedade nos vê e nos enquadra. E a partir disso há outras camadas que vão além da questão puramente feminista, porque, no final das contas, estamos falando do ser humano.”
Ela observa que a peça não tem preocupação em ser atual, mas tampouco ignora fatos, acontecimentos e contextos relativos ao mundo contemporâneo. “Acho que há uma reverberação de questões que hoje estão um pouco mais em voga em termos de discussão social, mas no tratamento de ‘Sal’ minha posição é sempre muito existencial, nunca é uma crítica pronta ou uma reflexão fechada”, salienta.
DIFERENÇA
A diretora e dramaturga aponta que, dessa maneira, consegue criar um lugar em que todos possam ter voz. “Quando a gente faz isso, tem que pensar que o bem e o mal estão em todo mundo. Não há o certo e o errado; há idiossincrasias. Essas duas mulheres travam um diálogo e discutem as diferenças entre elas, e a partir daí a gente vê as interseções e as conexões. A diferença – e não a igualdade – é o que nos move ao diálogo, então ‘Sal’ tem a busca pela liberdade com uma interseção entre dois pontos de vista muito diferentes”, explica.
Gabriela vê outras possibilidades de leitura simbólica da mulher que se atira do alto de um transatlântico e encontra outra mulher que veleja a esmo em alto mar. Para ela, “Sal” versa sobre saturação e sobre a necessidade de reinvenção. “O espetáculo trata daquele momento em que a gente chega ao limite da estafa com o que nos circunda, com as relações e com as escolhas que fazemos. Uma mulher, no seu limite, saltou de um transatlântico, e a outra fugiu da costa com um veleiro e foi se isolar no oceano”, diz.
Ela considera que sua personagem e a de Sâmylla são mulheres de universos muito diferentes, mas que têm isso em comum. “Elas estão num momento de vida de rompimento com o que eram, o que é também um momento de reencontro. A gente parte de uma premissa que se alinha com o realismo fantástico, mas essas personagens poderiam ser qualquer pessoa. Apesar de as ações delas serem extremas, o que leva a essas ações são coisas mundanas, estão próximas de todo mundo. Acredito que isso possa gerar uma identificação por parte da plateia.”
PANDEMIA
O processo de montagem de “Sal” se deu praticamente todo num contexto de pandemia, segundo Gabriela, o que, por um lado, foi positivo, porque houve tempo para que cada etapa do processo pudesse ser trabalhada cuidadosamente. Ela diz que a primeira reunião com Rita, após o convite feito, já se deu de maneira remota.
“A gente fez um primeiro encontro on-line achando que ia ser o único, marcando de dali a um mês estarmos juntas para os ensaios. Foi passando o tempo, e a gente ia adiando o encontro presencial. Ficamos uns dois ou três meses nesse processo, até entender que a pandemia ia demorar para acabar”, diz.
Rita aponta que esse primeiro momento de conversas on-line serviu para que se discutissem os elementos que comporiam o espetáculo. Somente em meados do ano passado é que as três puderam estar juntas presencialmente.
Gabriela comenta que quando se deram conta de que a pandemia não seria um evento passageiro, Rita abriu o espaço cultural que mantém na Região Central da cidade, o Clementtina, para que os ensaios pudessem ter início. Mas o processo, conforme ela diz, foi descontínuo.
“Por mais que o estúdio estivesse sendo utilizado praticamente só por nós, ele fica no Centro, próximo à praça Raul Soares, num local de muita circulação, então, quando vinha a onda roxa, a gente parava o processo de ensaio físico. No início deste ano, quando o cenário da pandemia estava bem grave, a gente parou com os ensaios por quatro meses. Tem o lado ruim de você perder um pouco o pique, mas também teve seus benefícios, porque alguns entendimentos se assentavam nos períodos em que a gente ficava sem ensaiar”, aponta.
Rita diz que foi durante esse processo que surgiu a ideia de que ela assinasse a dramaturgia do espetáculo. “Inicialmente eu ia apenas dirigir, mas, no caminho, vimos que eu escrever também era uma possibilidade e abracei a ideia totalmente”, diz, acrescentando que foi uma experiência muito rica.
PESQUISA
São duas artistas cheias de qualidades, o que vai além do fato de serem ótimas atrizes. Tem essa questão da musicalidade e tem o interesse pela pesquisa, pelo desenvolvimento da escritura de cena. E havia entre nós um diálogo muito legal. Elas bravamente encararam o desafio de criar, mesmo sem saber quando poderiam estrear.”
Gabriela diz que a apresentação on-line chegou a ser cogitada, mas como demandaria repensar vários elementos relativos à estrutura e à dramaturgia, as atrizes e a diretora seguiram moldando o espetáculo pensando no formato presencial.
“A gente insistiu, meio que nadando contra a corrente. A peça ficou pronta, mas os teatros ainda estavam todos fechados, então mantivemos o espetáculo no forno, esperando liberar os espaços. Quando começou a reabertura, fizemos alguns ajustes e logo entramos em contato com o pessoal do Galpão, onde a gente já tinha o desejo de estrear”, diz.
Ela explica que o espaço vai funcionar, durante essas quatro apresentações previstas, com apenas 50% da capacidade de público, o que justifica o fato de essa temporada estar sendo considerada como de pré-estreia.
“É bom para a gente começar devagar, vendo o que funciona e o que não”, diz. Sâmylla diz que a ideia, se os índices epidemiológicos permitirem, é fazer uma temporada maior, de estreia oficial, em março do próximo ano.
“Esse é um desejo já bem consolidado, até para deixar o espetáculo amadurecer durante um período maior em cartaz, antes de pensar em rodar com ele. A gente vislumbra essa temporada em março e, depois dela, se tudo der certo, a gente pensa em se inscrever em alguns editais e tentar viabilizar uma circulação por outras cidades.”
“SAL”
Direção e dramaturgia: Rita Clemente. Com Margem – Coletivo de Investigação Teatral. Desta quinta (2/12) a domingo, sempre às 20h, no Galpão Cine Horto (rua Pitangui, 3.613, Horto, 31.3485 5589). Ingressos: R$ 30 e R$ 15 (meia), no Sympla e na bilheteria (1h antes do espetáculo.