Com quase 40 anos de história e tradição no teatro, o Grupo Galpão passou por uma série de reinvenções nos últimos dois anos para superar a impossibilidade de realizar seus espetáculos presencialmente. A companhia de teatro mineira experimentou as transmissões ao vivo, ensaiou peças com os atores em casa, lançou um filme e uma radionovela e idealizou o projeto Dramaturgias – Cinco passagens para agora, que desde o início deste segundo semestre de 2021 promove espetáculos de diferentes formatos desenvolvidos por artistas convidados.
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Lilia Cabral divide o palco com a filha, Giulia Bertolli, em ''A lista''FAN retoma sua programação presencial e celebra a cultura bantoDuas atrizes e uma diretora discutem o feminino com a peça 'Sal'Guerras cotidianas da mulher inspiraram a peça ''Às que aqui ficaram''Sala Sergio Magnani reabre com nova versão da Semana de Música de CâmaraLulu Santos e Orquestra Ouro Preto fazem concerto pop neste sábado (4/12)Gravada em Belo Horizonte, a peça-filme nasceu do roteiro escrito pela jornalista, dramaturga e roteirista Silvia Gomez, que se inspirou na erupção do vulcão Fagradalsfjall, ocorrida em março deste ano, na Islândia, para criar a história. Nessa mesma época, ela estava "obcecada" por relatos de viagens, então decidiu unir os dois temas em um só.
"O que me impressionou na erupção do vulcão na Islândia é que as pessoas que moram lá celebram isso, de alguma maneira. Quando comecei a ‘stalkear’ esses islandeses nas redes sociais, percebi que eles a enxergam como uma oportunidade de construção de novas paisagens. Achei muito bonito tudo isso. E uma das imagens que mais me chamaram a atenção foi justamente a de um grupo de pessoas que estava jogando uma partida de vôlei enquanto o vulcão estava em plena atividade, ao fundo", conta Silvia Gomez.
Ela conta que se inspirou no livro "Um bom par de sapatos e um caderno de anotações", do escritor russo Anton Tchekhov (1860-1904), para inserir nesse cenário o relato de viagem, que acaba costurando as cenas avulsas que compõem a narrativa. "A viagem a que a gente se refere na história não é necessariamente real. Ela pode ser alucinatória ou interna, por exemplo. A ideia é que ela seja compreendida como uma busca pessoal por autoconhecimento", explica.
Apesar de ter sido escrita como um monólogo e ter somente uma personagem, "Partida de vôlei à sombra do vulcão" conta com um elenco composto pelos atores Antonio Edson, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Julio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André, Simone Ordones e Teuda Bara. Cada um deles vive a personagem em um determinado momento da história, um recurso projetado para assinalar a natureza fragmentada do texto.
"A personagem por si só já tem os limites borrados. Quando eu apresentei a proposta para o Galpão, o nosso desafio foi pensar de que maneira a gente poderia incluir vários atores na mesma história, já que o audiovisual permite isso. Isso também destaca a polifonia dessa narrativa. Essa é uma personagem em crise, que não necessariamente é uma personagem convencional", explica a dramaturga.
A atriz Fernanda Vianna, integrante do Grupo Galpão, é quem assina a direção da peça-filme junto com Clarissa Campolina. "Em junho, ela ainda desenvolvia o roteiro e começamos a pensar juntas. Gostaria muito que o trabalho tivesse algo forte, ligado às imagens, ao audiovisual, pois a imagem fala. Foi aí que pensamos na Clarissa Campolina, tamanha a admiração pelo trabalho dela", conta a atriz.
DESAFIO
Na prática, Fernanda Vianna cuidou da parte teatral, enquanto Clarissa deu o tom da parte audiovisual. O grande desafio para as duas foi dar vida a uma narrativa que seria encenada por vários atores, entre homens e mulheres.
"Clarissa começou a trabalhar a questão audiovisual e passamos a pensar o roteiro juntas, já que a personagem principal seria dividida entre os atores, algo que Silvia queria muito, por serem corpos de homens e mulheres. Comecei, também, a puxar o bonde, ao trabalhar com os atores e as atrizes. No Galpão, a gente joga muito bem juntos e, quando veio a câmera, Clarissa passou a nos puxar, sempre com uma imagem muito clara na cabeça", diz.
Ela define a obra de Silvia Gomez como "muito aberta", o que também colaborou para que o trabalho saísse do papel a partir de diferentes visões. "O texto tem um humor muito refinado. Ele fala de coisas cotidianas com uma profundidade muito grande. É um texto divertido e profundo, que permite uma série de camadas de interpretação", comenta.
LINGUAGENS
Segundo Fernanda, "Partida de vôlei à sombra do vulcão" "não é cinema, mas também não é teatro". "E é isso que eu queria. O resultado final tem um cuidado todo especial com a imagem, isso é muito visível. Mas também tem uma coisa artesanal, que é do teatro."
Clarissa Campolina, que também dirigiu a websérie "Farol de neblina", adaptada do espetáculo "Neblina", concorda com a parceira de direção. Para ela, a peça-filme representa não só o encontro de duas linguagens, mas também a troca de dois modos de produção bastante distintos.
"O teatro é mais horizontalizado. Ainda mais no caso do Galpão, grupo em que o coletivo chama muito mais a atenção. Produzir 'Partida de vôlei à sombra do vulcão' foi uma oportunidade única de ver algo sendo feito com um sentido coletivo muito grande. O coletivo foi um dos nossos pilares da criação", conta Clarissa.
No entanto, ela reconhece que não é sem motivo que a montagem é definida como peça-filme, com 'peça' em primeiro lugar. Ao longo de todo o processo de produção e gravação, Clarissa, Fernanda e Silvia por diversas vezes se viram na encruzilhada se o trabalho seria mais teatral ou mais cinematográfico. Mas o teatro predominou.
"O tempo todo a gente ficou nesse impasse entre lançar mão das convenções do teatro ou apostar mais nas do cinema. Mas isso foi um desafio por si só. A força do texto e a força da história do Galpão sempre fizeram com que o teatro falasse muito mais alto. A câmera só potencializou a narrativa", avalia Clarissa Campolina.
Antes pensado como um projeto que duraria até 31 de dezembro de 2021, Dramaturgias – Cinco passagens para agora ainda deve produzir um último espetáculo para o público do Grupo Galpão para estrear em 2022, com dramaturgia assinada por Paulo André, em parceria com Marcio Abreu.
Ainda que o projeto esteja em andamento, Fernanda Vianna já o avalia com bons olhos. "Acho que a gente teve uma coisa muito positiva com ele. No ano passado, ainda estávamos tateando todo esse negócio de teatro on-line, sem saber muito o que fazer. Com o Dramaturgias a gente aprofundou e conseguiu dar vazão para projetos muito distintos", ela comenta.
Além de "Partida de vôlei à sombra do vulcão", também fizeram parte do projeto o curta-metragem "A primeira perda da minha vida", o espetáculo on-line "Como os ciganos fazem as malas", encenado por meio do aplicativo de mensagens Telegram, e o espetáculo "Sonhos de uma noite com o Galpão".
"Nós assumimos riscos e experimentamos novas possibilidades. Até aqui, penso que esse projeto foi uma verdadeira forma que encontramos de experimentar com a linguagem teatral sem impor nenhum limite. E isso foi feito de modo muito profundo e proveitoso", avalia Fernanda.
“PARTIDA DE VÔLEI À SOMBRA DE UM VULCÃO”
Estreia neste sábado (4/12), às 20h, no canal do Grupo Galpão no YouTube. A temporada segue até o próximo dia 19, sempre de quinta a domingo, às 20h. Gratuito. Classificação: 12 anos. Mais informações: grupogalpao.com.br