Em janeiro deste ano, a equipe do Estúdio M’Baraká fez sua primeira incursão ao Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro. Havia muito que ver, mas o tempo era escasso. A primeira gaveta aberta, recorda-se bem o diretor de arte, Diogo Rezende, foi de aquarelas de Carlos Pertuis (1910-1977).
“Eram 30 ou 40 retratos de uma mesma face, atravessados por paisagens do Rio e também lugares imaginários, algo que fala sobre sermos muitos e como nos vemos na cidade”, comenta. Na sequência, outras 10 gavetas foram abertas – mas a força das imagens da primeira não saiu da cabeça do curador.
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A exposição “Nise da Silveira – A revolução pelo afeto” apresenta um diálogo entre arte e loucura por meio da trajetória da psiquiatra, da obra de seus clientes (a maneira como ela chamava os pacientes) e de outros artistas, contemporâneos ou não a ela, que também lidaram com o tema.
Ocupando quatro salas e o corredor do primeiro piso do CCBB, a mostra reúne mais de uma centena de obras. São três diferentes grupos: parte do acervo do Museu de Imagens do Inconsciente, que forma o grosso da exposição; trabalhos de artistas modernos, que se relacionaram com ela e com suas ideias (como Lygia Clark e Abraham Palatnik); e um terceiro grupo, de nomes contemporâneos, cujas obras não têm relação com a saúde mental, mas que promovem um diálogo com a mostra.
ALICE
Deste último grupo, Diogo Rezende cita “Alice e o chá através do espelho” (2014), fotoperformance de Rafael Bqueer que apresenta o artista paraense de costas, vestido como a personagem de Lewis Carroll, no meio de um lixão.
“Ali temos uma Alice distópica, desconstruída, feita por um homem negro em um cenário completamente assimétrico que retrata a realidade do Brasil e de muitos dos ‘clientes’ do hospital de Engenho de Dentro”, comenta o curador.
A mostra destaca em torno de 80 obras de pessoas que passaram pela instituição de saúde mental. O processo de seleção foi grande, pois alguns dos nomes mais conhecidos, como Adelina Gomes e Emydio de Barros, deixaram no acervo do museu 17 mil e 3,3 mil obras, respectivamente. “O que fizemos foi mais um trabalho de edição, pois já se falou muito sobre eles”, afirma Rezende.
No entanto, ele aponta algumas descobertas. Uma delas é de Beta d’Rocha. “Foi uma artista/cliente que esteve em diferentes períodos no hospital e é um caso de reintegração social. Publicou um livro (‘A história de Beta’). Descobrimos pastas e pastas dela, que haviam sido pouco vistas”, cita Rezende.
A exposição gira em torno de três núcleos temáticos: “Contexto, dor e afeto”, “Nise, ser mulher, ser rebelde” e “Engenho de dentro”. “Não queríamos fazer uma exposição linear e biográfica. Encontramos a trajetória de Nise ao longo de toda a exposição”, explica o curador.
ELETROCHOQUE
O primeiro núcleo mostra, por exemplo, Nise tendo contato com tratamentos de eletrochoque. Há uma história conhecida em que ela, bastante jovem, presencia a primeira sessão de emprego da técnica. Finda a aplicação em um paciente, o psiquiatra manda trazer outro e diz a ela: “Aperte o botão” (que daria início ao eletrochoque). Ao que a jovem médica responde: “Não aperto”.
Nesse núcleo estão expostos desenhos de Carlos Pertuis que expõem a dor do paciente psiquiátrico. “Meu sofrimento na seção, de quem é a culpa?” (1956) é o título do desenho feito por ele em grafite e lápis de cera.
O segundo núcleo, “Ser mulher, ser rebelde”, acompanha Nise durante sua formação em medicina, sua prisão e a criação do ateliê de arte. Um dos destaques foi a recriação de sua imensa biblioteca (ela mantinha um apartamento em cima de sua residência somente para guardar os livros, que eram apoiados em estantes feitas de tijolos). A pintora carioca Margaret de Castro foi convidada pela curadoria para recriar, em quatro telas, a biblioteca.
O último núcleo, “Engenho de dentro”, foi construído a partir de uma analogia feita por um cliente de Nise, que dizia que o Engenho (referindo-se ao hospital) era o próprio inconsciente. Nessa seção, é enfatizada a relação da psiquiatra com Carl Jung, de quem foi aluna e seguidora. A exposição tem uma versão virtual (acesso pelo site nisenoccbb.com.br), que inclui um tour 360 e uma experiência sonora descritiva que recria os ambientes da mostra com dramaturgia.
SAIBA MAIS
Quem foi Nise da Silveira
Nascida em Maceió, filha do professor de matemática e jornalista Faustino Magalhães da Silveira e da pianista Maria Lídia da Silveira, Nise da Silveira foi a única mulher entre os 157 formandos de 1926 da Faculdade de Medicina da Bahia. Pouco depois de se formar, casou-se com o sanitarista Mário Magalhães, com quem viveu por toda a vida. O casal, que se mudou para o Rio em 1927, não teve filhos.
Nos anos 1930, Nise se especializou em psiquiatria. Em 1936, durante a ditadura Vargas, ela era residente no Hospital Nacional de Alienados. A denúncia de uma enfermeira, que declarou que a médica possuía “literatura comunista”, levou-a para a prisão. Acusada de ser militante, ficou encarcerada durante um ano e três meses.
Libertada em 1937, viveu com o marido numa situação de semiclandestinidade e quase penúria. Só voltou ao serviço público após ser anistiada, em 1944, mas em outro hospital carioca: o Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, em Engenho de Dentro. Por sua discordância em aplicar eletrochoques nos pacientes, foi transferida para o setor de terapia ocupacional. Em 1946, fundou na instituição a Seção de Terapêutica Ocupacional, criando ateliês de arte para os pacientes.
Na década de 1950, além de fundar o Museu de Imagens do Inconsciente, Nise também se aproximou de Carl Jung. Depois de trocas intensas de correspondência, foi para Zurique, onde estudou com ele. Posteriormente, formou o Grupo de Estudos Carl Jung e publicou “Jung: Vida e obra” (1968), entre outros livros.
Morreu no Rio de Janeiro, aos 94 anos, em 30 de outubro de 1999. Em 2016, o cineasta Roberto Berliner lançou a cinebiografia “Nise: O coração da loucura”, com Glória Pires no papel-título.
NISE DA SILVEIRA – A REVOLUÇÃO PELO AFETO
A exposição será aberta nesta quarta (8/12), às 10h, no Centro Cultural Banco do Brasil, Praça da Liberdade, 450, Funcionários. Visitação de quarta a segunda, das 10h às 22h. Entrada franca, mediante retirada de ingresso com agendamento prévio no site Eventim. Até 28 de março