Ao mesmo tempo que sociedades ocidentais ficam mais abertas sexualmente, há menos cenas de sexo nas grandes produções de cinema do que jamais houve. Será que a indústria cinematográfica entrou numa nova era puritana?
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Filme de animação do Giramundo marca guinada do grupo ao cinema20 anos de Harry Potter no cinema: como estão os atores hoje?Jean-Paul Belmondo: o feio mais bonito do cinemaEsses são apenas três exemplos de cenas picantes apresentadas na grande tela, entre muitas ao longo da história do cinema. Seja na troca de olhares sensuais ou em amassos cuidadosamente filmados sob os lençóis ou nu frontal, a sexualidade é uma parte inerente da experiência cinematográfica — porque sexo é uma parte inerente das nossas vidas. Negar sexo e sexualidade no cinema é negar a totalidade de nossa própria humanidade.
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Mas será que, apesar de tudo isso, cineastas estão cada vez mais abandonando o erotismo?
Durante o verão europeu deste ano, antes da exibição de estreia de seu filme Benedetta no festival de Cannes, o veterano cineasta Paul Verhoeven deu uma entrevista à revista americana Variety. Questionado por que filmes como seu suspense erótico Instinto Selvagem não estavam mais sendo produzidos em Hollywood, ele respondeu: "Tem havido um movimento generalizado na direção do puritanismo. Eu acho que é uma confusão a respeito da sexualidade nos Estados Unidos. A sexualidade é o mais básico elemento da natureza. Eu sempre fico pasmo ao ver que as pessoas ficam chocadas com sexo em filmes".
Para alguns críticos, que têm lamentado há um certo tempo o que acreditam ser o novo puritanismo de Hollywood, ouvir isso de Verhoeven parece uma confirmação de que estavam certos. Afinal, Verhoeven ajudou a definir o suspense erótico dos anos 1990 e sempre foi, desde o início, um diretor interessado em sexualidade ousada.
Embora ele tenha começado a fazer filmes em seu país de origem, a Holanda, no final dos anos 1970, sua mudança para as grandes produções de Hollywood manteve seu mesmo gosto para a ousadia e para testar os limites, da notória cena de interrogatório em Instinto Selvagem à vulgaridade do criticado Showgirls (1995), até seu drama recente sobre consentimento sexual, Elle (2016).
Verhoeven também claramente não perdeu seu toque transgressor. No festival de cinema de Nova York deste ano, um grupo católico apareceu para protestar contra seu retrato de freiras lésbicas no século 17 no filme Benedetta. No mínimo, ele sabe um pouco sobre como retratar sexo no cinema.
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O que as estatísticas mostram
Então Verhoeven está certo?
Hollywood realmente tomou um caminho na direção de um cinema sem sexo.
Segundo uma pesquisa de 2019, da escritora Kate Hagen, a resposta é sim. Usando dados do site de cinema IMDB, ela descobriu que, estatisticamente, há menos cenas de sexo em grandes produções da atualidade do que houve em qualquer momento dos últimos 50 anos.
Hagen escreveu: "Apenas 1,21% dos 148.012 longa-metragens lançados desde 2010 contêm cenas de sexo. Esse percentual é o mais baixo desde os anos 1960. O sexo no cinema atingiu seu auge nos anos 1990, a era de ouro do suspense erótico, com 1,79% de todos os filmes trazendo cenas de sexo. Essa queda de meio ponto percentual é enorme em termos relativos, considerando que quase quatro vezes mais filmes foram lançados na década de 2010 do que nos anos 1990".
Certamente, sempre haverá filmes como o recente excêntrico musical Annette, primeiro filme em inglês do diretor francês Leos Carax, em que os atores Adam Driver e Marion Cotillard cantam enquanto fazem sexo oral. Ou Titane, vencedor deste ano da Palma de Ouro em Cannes e cujas brincadeiras sexuais com fluidez de gênero fez da produção uma sensação entre os filmes de arte. Mas talvez seja este o cerne da questão: ao mesmo que a apresentação de sexo pode estar a todo vapor no cinema de arte de estilo europeu, as indústrias tradicionais de cinema dos Estados Unidos e do Reino Unido ficaram menos sexualizadas.
O que aconteceu como o "softcore", o "pornô-chic", os suspenses eróticos? Mesmo fora de qualquer um desses gêneros especificamente "sexy", o que aconteceu com as comédias românticas e filmes de adolescentes ou de ação que tinham — mesmo que apenas um pouco — um frisson genuinamente sexual?
Há várias tendências, sociais e cinematográficas, que podem ser responsáveis pelo maior distanciamento do sexo nas telas de cinema. A razão mais mencionada é o fato de que, desde o auge do suspense erótico nos anos 1990, a pornografia na internet tornou-se tão facilmente disponível que o público estava se excitando com outras coisas, digamos assim.
De sua parte, no entanto, Verhoeven discordou dessa interpretação na entrevista para a Variety. "Havia pornografia por todo lugar quando eu era jovem, se você quisesse ver. Se há uma mudança em como nós vemos sexualidade nos filmes, eu não acho que tenha a ver com a pornografia na internet."
A escritora e comentarista cultural Helen Lewis, autora de Difficult Women: A History of Feminism in 11 Fights (Mulheres Difíceis: uma História do Feminismo em 11 Lutas), acredita que o avanço da televisão como forma de arte conhecida por sua franqueza sexual teve um impacto na forma como o público vê o sexo na tela de cinema.
"Estamos comparando filmes com programas feitos para serviços de streaming, e talvez a gente os ache um pouco domesticados. Na televisão, a HBO foi pioneira num modelo que disse: você pagou por uma assinatura, então nós partimos do princípio de que você é um adulto. Isso lhe permitiu exibir séries como, digamos, Sex and the City e The Deuce", afirma ela.
A Netflix também parece disposta a entrar nesse território mais sexualizado, caminhando por onde os estúdios de cinema não têm coragem de caminhar. Um de seus maiores sucessos foi a série histórica Bridgerton, cujo apelo de massa pareceu ligado não apenas a suas brincadeiras românticas, mas um crescendo tentador, espalhado em vários episódios, levando para cenas quentes de sexo. Eles continuaram com a produção de baixo valor, mas de incrível sucesso, Sex/Life, centrada nas fantasias sexuais de uma mulher casada.
No entanto, colocando de lado o que tem acontecido na tela pequena, muitos sugerem que um verdadeiro espírito de assexualidade tem influenciado muitos produtos de Hollywood. Em seu artigo "Everyone is Beautiful and No One is Horny" ("Todo Mundo é Lindo e Ninguém Tem Tesão"), a escritora Raquel S. Benedict oferece uma teoria específica sobre por que isso tem acontecido e que tem a ver com os corpos perfeitos da academia, cheios de músculos, de Hollywood, que vemos em filmes de ação e de super-heróis, especialmente os dos universos Marvel e DC, que hoje em dia dominam os cinemas de rede.
Crítica em relação a essa mudança, ela escreve que esses personagens hiperesculpidos representam um novo moralismo, físico, sexual ou de outra natureza, cuja mensagem implícita é que "se divertir significa amolecer, deixar sua equipe na mão e dar ao inimigo uma oportunidade de vencer, como Thor fez quando ficou gordo em Endgame".
(Compare e faça o contraste entre os Thors e Batmans da atualidade com a sexualidade lubrificada de um jovem Sylvester Stallone ou Jean-Claude Van Damme, por exemplo, que eram supermusculosos, mas também se divertindo, piscando para espectadores do sexo feminino e gays masculinos em cenas abertamente picantes.)
Como as expectativas mudaram
Benedict afirma que essa estética dessexualizada segue de mãos dadas com a grande mudança em relação a quanto sexo os públicos realmente esperam ver no cinema. Quando olhamos para os anos 1980 e 1990, argumenta ela, mesmo os filmes daquela época que podemos lembrar como sendo para toda a família têm mais sexo, seja literalmente ou sugestivamente, que a maioria da oferta de hoje em dia.
"Os espectadores millenials e da geração Z ficam sempre surpresos quando se deparam com conteúdo sexual já esquecidos: a concepção de John Connor em O Exterminador do Futuro, o topless de Jamie Lee Curtis em Trocando as Bolas, o sexo oral fantasmagórico em Os Caça-Fantasmas", escreve ela. "Essas cenas não nos chocou quando as vimos pela primeira vez. É claro que tem sexo num filme. Não tem sempre?"
Com o avanço de grandes corporações ligadas à cultura familiar, como a Disney, que se tornaram cada vez mais dominantes no cenário cultural, a resposta parece ser: não. O executivo-chefe da Associação de Cinema do Reino Unido, Phil Clapp, disse recentemente ao jornal britânico i Newspaper que o número de filmes classificados para 18 e 15 anos de idade caiu na última década, com estúdios "cada vez mais visando o público das famílias para maximizar o faturamento na bilheteria".
Além disso, quando filmes campeões de bilheteria são pensados para seguirem uma fórmula e serem inofensivos o suficiente para atrair um grande público, eles tendem a ficar reduzidos a ação, trama, explosão e cenas violentas usando efeitos de computador tipo CGI.
Em outra palavras: eficiência. Cenas de ação violentas podem mover a trama adiante de forma mais óbvia. Mas sexo não é eficiente. Não é — estritamente falando — necessário. É complicado e arriscado, e provavelmente não há nada que os conglomerados de hoje em dia querem menos que correr o risco de alinenar consumidores.
"Aqui talvez haja um tipo de autocensura que não permite que roteiristas escrevam outros tipos de histórias", disse o diretor espanhol Pedro Almodóvar, mestre do cinema de arte, sobre a atual supremacia do filme de super-herói. "Há muitos, muitos filmes sobre super-heróis. E não existe sexualidade para os super-heróis. Eles são castrados."
É verdade que o último filme da Marvel, Eternos, finalmente traz a primeira cena de sexo da série — embora, dada sua visível brevidade e o excessivo barulho feito em torno dela, podemos nos perguntar se ela foi mais do que um exercício para marcar algo como feito para calar críticas anteriores sobre a falta de sexo do universo Marvel.
Ainda assim, apesar dessas reclamações, ainda existe, uma onda crescente de sentimento de que existe, de fato, sexo demais nas telas de cinema. Apesar de dados provando que há menos cenas de sexo que em décadas anteriores, o argumento de que cenas de sexo, em geral, são "desnecessárias" e, portanto, deveriam ser eliminadas, tornou-se cada vez mais predominante no Twitter e em outros fóruns online. "É fascinante e cansativo ver o discurso insistente sobre cenas de sexo", diz Hagen. "Eu simplesmente não consigo compreender o que as pessoas podem estar assistindo que tenha 'sexo demais' em 2021." A conclusão lógica é simplesmente de que alguns espectadores (muitos deles mais jovens) não estão inclinados a ver cenas de sexo, mesmo as relativamente poucas que aparecem hoje em dia. Essa falta de interesse em conteúdo sexual (ou, a julgar pelas mídias sociais, em alguns casos aversão) pode ter capturado a atenção daqueles que têm poder de decisão nos estúdios.
Esse novo desconforto com representações de sexo está também provavelmente ligado às revelações do movimento #MeToo. A exposição de casos de ataques e abusos na indústria do cinema provocou a uma enorme mudança positiva, incentivou cineastas a colocar um fim à objetificação de mulheres e levou a uma crescente introdução de coordenadores de intimidade para ajudar atores a se sentir seguros. Seus esforços garante que questões de limites e consentimento sejam corretamente navegadas durante a filmagem de cenas de sexo. Mas, mesmo com isso tudo, podem persistir ansiedades em relação à validade de se retratar o sexo e se isso é algo gratuito ou não. Recentemente, sexo passou a ser sentido como um tema muito sério, sobre o qual ninguém quer brincar ou que ninguém quer representar "de forma errada". Cineastas podem estar respondendo a essa ansiedade com sua própria timidez em torno do assunto: ninguém quer uma tempestade de rede social em suas mãos.
Em um artigo de 2019, a crítica Ann Hornaday, do jornal americano The Washington Post, apresentou um ponto relevante sobre a necessidade de um certo equilíbrio na abordagem da indústria cinematográfica ao sexo nas telas. "Com certeza, há muito pouco a lamentar na morte do tipo de fantasia de excitação e desejo que os diretores masculinos impuseram nos expectadores por quase um século. Mas será que a abstinência é nossa única opção?", escreveu ela. "Com cineastas mais jovens sendo cooptados pelo complexo Disney-Marvel e com millenials e a geração Z supostamente fazendo menos sexo que seus predecessores, a nova castidade nas telas parece um novo normal prudente, mas não totalmente bem-vindo."
Como Helen Lewis aponta, no entanto, a TV parece ter descoberto o que o cinema ainda precisa descobrir: como lidar com uma batata quente. "Na BBC, I May Destroy You mostrou recentemente cenas gráficas de sexo - mas elas não eram excitantes no velho significado de 'explícito', elas eram difíceis, desconfortáveis e corajosas", diz ela. "Eu acho que o cinema está começando a enfrentar essa conversa: 'O que esta cena de sexo está fazendo aqui? Para quem é?".
Esse questionamento também levou, inegavelmente, a mudanças positivas em torno da representação do desejo feminino nas telas. Frances Rayner é fundadora do site The Clit Test (O teste do clitóris), que examina o cinema e a televisão perguntando se suas cenas de sexo retratam o prazer e a sexualidade femininos honestamente. Ela diz: "Enquanto a maioria das cenas de sexo ainda é bastante heteronormativa, houve um aumento perceptível em atos sexuais que privilegiam o prazer sexual feminino, como cunnilingus. E temos visto um aumento de cenas de mulheres se masturbando - algo que era previamente notável por sua ausência".
Também há menos sensualidade?
Para os retratos de sexo serem progressistas, eles precisam primeiro ser incluídos nos filmes. Em geral, será que em pouco mais de um século de cinema americano, os filmes realmente podem ter ficado mais perto do puritanismo, mesmo com a sociedade mais ampla tendo ficado mais aberta sexualmente falando? O estudo de Hagen sobre cenas de sexo sugere isso, com base em evidências, embora valha a pena lembrar que essas estatísticas apenas se referem a exibições literais de sexo na tela, não os pequenos momentos de sensualidade crua que não podem ser quantificados em nenhuma métrica. Falando de forma cinematográfica, o carnal pode também estar ligado a alusões e sugestionamentos. Uma mordida num exuberante pêssego de verão ou um vestido decotado de cetim sobre um chão acarpetado.
A sugestão aparece no cinema num nível molecular; é um dos princípios por trás de todo o conceito de montagem. Nossas mentes dão saltos laterais, de uma imagem para outra, juntando suas implicações tão rapidamente que é quase inconsciente. E, quando se trata de sugestionamentos sexuais, o cinema dos Estados Unidos sempre teve de ser um pouco dissimulado. A censura em Hollywood foi dominante de 1932, com a instalação do Código de Produção Hays, até sua lenta dissolução no final dos anos 1950. Muito do código concentrava-se em proibir relações antes do casamento e impedir a exibição de casais, mesmo casados, juntos na cama, muito menos mostrar uma mulher visivelmente grávida, um relacionamento interracial ou a sugestão de homossexualidade.
Nada disso significou que cineastas inteligentes não podiam tentar ignorar o código com 1 milhão de insinuações e olhares para os lados.
Às vezes aquilo que era sexual era feito de forma deliciosamente metafórica, como no clássico filme de Sangue de Pantera (1942), de Jacques Tourneur, em que a sexualidade feminina descontrolada é literalmente predatória. Mas nudez genuína, ou a "cena de sexo" como nós a conhecemos, simplesmente não existiu no grande cinema americano até o início dos anos 1960. Muito da história do sexo de Hollywood era contrabandeado, sugerido ou gestual; pouco era explícito, até a revolução sexual dos anos 1960 e 1970.
A história nos mostrou que não precisamos de cenas explícitas de sexo para passar deduzir frisson sexual. Como disse uma vez o cineasta mestre de Hollywood Ersnt Lubitsh (diretor de Sócios no Amor, Ninotchka e vários outros audaciosos e loucos clássicos dos anos 1930 e 1940): "Trate seu público com respeito… Deixe que ele some dois mais dois… Ele amará você para sempre".
Entretanto, a preocupação é que, assim como existe menos representações explícitas de sexo nos filmes hoje em dia, também tem havido uma perda mais geral de sensualidade — o que, novamente, pode ser interpretado como tendo uma motivação econômica.
Como Stephen Galloway, jornalista da revista The Hollywood Reporter, disse: "Hollywood simplesmente não se dedica mais à atividade de criar dramas de personalidades de orçamento mediano que podem incluir ou não união física".
Frequentemente, com o declínio tanto de dramas românticos como de comédias românticas enquanto gêneros cinematográficos, isso significa não apenas que o sexo está fora de cena, mas também o tipo de química quente entre estrelas que há tempos é um dos maiores encantos do cinema enquanto meio.
Hollywood está numa encruzilhada. Armada com o conhecimento de erros do passado, de sexismo e homofobia, a indústria tem como melhor esperança que artistas respondam à representação de sexo e sexualidade com maior ciência e sensibilidade do que antes. E, enquanto alguns podem ficar perguntando se a cena de sexo é desnecessária, outros podem também responder: as melhores coisas também não são?"
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