Em 8 de março de 1941, a escritora Virginia Woolf assistiu a uma palestra do marido, Leonard Woolf, em Brighton, Inglaterra. Naquele primeiro dia da primavera, observou as mulheres saindo às ruas, comprou ingresso para um museu, andou de bicicleta. À noite, preparou hadoque e linguiça para o jantar.
Exatos 20 dias depois, ela encheu de pedras os bolsos de seu casaco, foi até o Rio Ouse, próximo à sua casa, e se afogou. Seu corpo foi encontrado no mês seguinte, em 18 de abril.
Lançado nesta semana, “Os diários de Virginia Woolf – Uma seleção” (Rocco, 430 páginas) traz um apanhado inédito no Brasil dos escritos pessoais a que a autora de “Mrs. Dalloway” (1925) se dedicou, desde seus 15 anos, em 1897, até quatro dias antes de seu suicídio, aos 59.
“Gosto demais dos textos, que são espetaculares. Têm um grau de autoexposição muito forte. Ela, de fato, faz um diário”, comenta a crítica literária e pesquisadora Flora Süssekind, responsável pela seleção.
Qualquer que seja a edição dos escritos pessoais de Woolf, o trabalho, quase de ourivesaria, é grande, já que ela produziu 38 volumes – nem todos foram editados em livro. A maior parte dos manuscritos, 27 volumes, integra a Coleção Berg da Biblioteca Pública de Nova York – foi adquirida em 1971 por US$ 20 mil. Outra parte relevante do material original está na Universidade de Sussex, na Inglaterra, no arquivo Monks House Papers.
BLOOMSBURY
A autora foi figura central na reunião de intelectuais da aristocracia inglesa que ficou conhecida como o “Grupo de Bloomsbury”. De uma maneira geral, eles pregavam a liberdade de comportamento e contestavam o puritanismo da época.
Parte desse material começou a vir a público em 1953, quando Leonard Woolf organizou a compilação “A writer’s diary”. Sobrinho da escritora, Quentin Bell, também autor de biografia seminal da britânica, organizou posteriormente, ao lado da mulher, Anne Olivier Bell, um material mais extenso dos diários.
“O marido cortou muita coisa na primeira coletânea, mas o diário de escritor que ele fez mostrou para as pessoas não só a qualidade do texto, como também como ela era uma autora que pensava a escrita”, acrescenta Flora.
Para o volume, com tradução de Angélica Freitas, Flora escreveu o posfácio (“Virginia Woolf, os trabalhos & os dias”) e algumas das 850 notas. Fez a divisão por décadas: “Os diários de juventude” (de 1897 a 1909), e as décadas de 1910, 1920 e 1930. Antecedendo cada parte, há um pequeno texto da organizadora localizando os principais acontecimentos na vida da escritora e no mundo.
“Tem coisas que parecem engraçadas que fiz questão de manter. São entradas diárias bem do cotidiano, pequenas coisas, como ‘coloquei isto no correio’, ‘minha irmã está pintando e eu andando a pé sozinha’. As repetições são marcas da escrita do diário, já que você entra no cotidiano da pessoa”, diz Flora.
HUMOR
Em 4 de janeiro de 1897, Virginia Woolf, prestes a completar 15 anos, conheceu a Agência Central dos Correios. “Faziam tanto barulho que eu não conseguia escutar a explicação do guia sobre o que estava acontecendo: então é impossível descrever-te qualquer coisa, querido diário.”
Outro aspecto mais comezinho da vida da escritora que Flora destaca era a relação dela com as empregadas que trabalhavam em sua casa. “Mas o fato do dia para mim foi um vago incômodo causado pelo caráter excêntrico da nova empregada, Maud. Quando falamos com ela, ela se detém e olha para o teto. Entra no quarto abruptamente ‘só para ver se você está aí’”, escreveu em 29 de janeiro de 1915.
“Tem uma coisa interessante sobre (o romance) ‘Ao farol’ (1927). Na segunda parte, você sabe o que se passou no intervalo de tempo por meio das senhoras que fazem a faxina. E é lindo perceber isto no texto, a limpeza, o abrir das janelas para deixar o vento entrar”, comenta Flora.
As duas guerras se fazem muito presentes, obviamente. “Nos últimos anos dela, em que tudo parece muito absurdo, você vê como Virginia Woolf mantém força para continuar escrevendo com bombas a pouquíssimos metros de casa, ou seja, com uma disciplina de escrita no diário”, diz Flora, que selecionou também textos que destacam a ascensão do fascismo.
A depressão, que a acompanhou por toda a vida, é tratada em primeira pessoa sem meios tons. “Para mim é tão estranho não entendê-la direito – a depressão, isto é, que não vem de algo concreto, mas do nada”, anotou, em 28 de setembro de 1926.
Para a organizadora, no entanto, o prazer maior está em fazer a ligação do que Virginia Woolf escreveu em seus diários com seus romances. “É muito interessante, por exemplo, acompanhar a escrita dela durante o período em que escreveu ‘Os anos’ (1937). Ela pensou o livro como algo que misturasse ensaio e ficção, notícias, fatos, com coisas ligadas ao cotidiano”, afirma Flora.
Não foi um processo fácil, como Virginia Woolf descreveu em entrada de 5 de setembro de 1935, bem antes da publicação. “Não consigo escrever uma palavra. Mesmo assim sou capaz de ver que existe algo ali; então vou esperar um dia ou dois e deixar o poço encher. Desta vez tem que ser bastante profundo – 740 páginas. Psicologicamente, esta é a mais estranha das minhas aventuras, acho.”
“Os anos” foi o último romance publicado em vida de Virginia Woolf. Foi lançado em 1937, com a metade das páginas que ela previu dois anos antes. Na verdade, gerou outro volume, o ensaio “Três guinéus” (1938), este, sim, com a parte não ficcional do romance.
OUTRAS PUBLICAÇÕES
O lançamento da Rocco finaliza o ano da oitava década de morte de Virginia Woolf. Um dos marcos no país, em 2021, foi a publicação de “Os diários – Volume 1”, da Editora Nós, que reúne os escritos integrais entre 1915 e 1918 e promete um segundo volume para um futuro próximo. A editora também lançou neste ano três volumes de ensaios: “A morte da mariposa”, “Pensamentos de paz durante um ataque aéreo” e “Sobre estar doente”.
O clássico ensaio “Um quarto só seu”, de 1928, (ou “Um teto todo seu”, como é mais conhecido), ganhou nova tradução da Bazar do Tempo, em volume que contempla escritoras britânicas como Jane Austen e as irmãs Brontë. A Autêntica, que vem, nos últimos anos, investindo em edições de luxo da obra da autora, publicou, também recentemente, o romance “As ondas”.
TRECHO
. Última entrada que Virginia Woolf fez em seu diário
“Segunda-feira, 24 de março de 1941
Ela tinha um nariz como o do Duque de Wellington e grandes dentes de cavalo e olhos frios e salientes. Quando entramos estava sentada numa cadeira triangular com seu tricô nas mãos. Uma seta abotoava o seu colarinho. E antes que se passassem 5 minutos ela nos contou que dois de seus filhos foram mortos na guerra. Isto, pudemos sentir, era um orgulho para ela. Ela era professora de costura. Tudo na sala era vermelho marrom e brilhante. Sentada lá, tentei fazer alguns elogios. Mas estes pereceram no mar gelado entre nós. E depois não houve mais nada. Uma curiosa sensação de estar à beira-mar, hoje. Isso me fez lembrar dos alojamentos num desfile de Páscoa. Todos se equilibrando contra o vento, com frio, em silêncio. Toda a polpa removida.”
“OS DIÁRIOS DE VIRGINIA WOOLF – UMA SELEÇÃO”
Organização: Flora Süssekind
Tradução: Angélica Freitas
Rocco (430 págs.)
R$ 129,90