Nas quartas de final da Copa do Mundo de 1986, Maradona protagonizou um de seus mais polêmicos feitos em campo. O camisa 10 da Seleção Argentina marcou um gol de mão contra os britânicos. No final da partida, quando questionado, ele, malandramente, respondeu: “Marquei um pouco com a minha cabeça e um pouco com a mão de Deus.”
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Mas esse acontecimento, que dá uma guinada na narrativa, só aparece na metade do filme. Até lá acompanhamos, entre risos e lágrimas, a família do jovem Fabietto Schisa (Filippo Scotti). Ele é um dos poucos membros introvertidos de uma ruidosa parentada do Sul da Itália. O filme parte das próprias memórias de Paolo Sorrentino, que retornou, com o projeto, a sua cidade natal.
A narrativa é ambientada na década de 1980 e parte do anúncio, que deixa a todos boquiabertos, de que Maradona vai jogar no Napoli (o jogador, contratado por US$ 10 milhões, defendeu o time entre 1984 e 1991, a melhor fase de sua carreira). A vida vai mudar, é o que acreditam os Schisa.
Eles são tudo, menos convencionais. Patrizia (Luisa Ranieri), a primeira personagem a aparecer no filme, é a tia mais jovem de Fabietto e o motivo de suas noites insones. Ao chegar tarde em casa, a mulher, que começou a sofrer de algum distúrbio mental por não conseguir engravidar, é agredida pelo marido, que a acusa de prostituição. Os pais de Fabietto tentam acudir o casal – e o menino não tem olhos para nada além dos seios desnudos da tia/musa.
O garoto e seus pais – Saviero (Toni Servillo, ator recorrente na obra de Sorrentino) e Maria (Teresa Saponangelo) – vão ajudar a tia dividindo uma scooter pelas ruas de Nápoles. A imagem do trio livre na noite da cidade será memória recorrente na vida de Fabietto. Também o amor de seus pais, capazes de assobiarem um para o outro, ainda que o casamento sofra com o drama que já os acompanha há muitos anos. Alma da família, Maria é capaz de ficar por horas fazendo malabarismos com laranjas.
Esse núcleo ainda conta com o irmão mais velho de Fabietto, que sonha em ser ator e tenta o teste para ser um dos quatro mil extras de um filme de Fellini; de sua irmã, que não sai do banheiro; a vizinha baronesa que tem jeito de bruxa mas será essencial para o crescimento do jovem; e da parente mal-humorada, que vive de falar palavrões, come se o mundo fosse acabar e não tira o casaco de peles por nada deste mundo – nem mesmo durante o verão de clima mediterrâneo.
É tudo exagerado, colorido, fora dos padrões. Há mais de um momento, principalmente na primeira metade do filme, em que acompanhamos uma história em que nada acontece realmente. Mas não há nada de mal nisso, muito pelo contrário. Assistir a parentes passeando de barco no verão e rindo por qualquer coisa é algo totalmente familiar.
TRANSIÇÃO
Até que é chegada a hora de Fabietto se tornar adulto. E é nesse ponto que “A mão de Deus” vai, aos poucos, se tornando o filme sobre o nascimento de um cineasta.
O garoto decide assistir ao filme preferido do pai, “Era uma vez na América”; faz amizade com outro jovem, um contrabandista de cigarros; perde a virgindade da maneira mais improvável que se tenha notícia; observa o homem mais rico do mundo passar à sua frente; e tem um debate grandioso com o cineasta Antonio Capuano (interpretado por Ciro Capano, o diretor napolitano que, na vida real, é uma espécie de mentor de Sorrentino).
Tantas histórias que os personagens percorrem ao longo de duas horas conseguem ser amarradas na sequência final, ainda que com um toque de melancolia. Em seu retorno ao passado, Sorrentino faz sua incursão mais pessoal no cinema. É agridoce de um jeito meio gauche.
“A MÃO DE DEUS”
O filme de Paolo Sorrentino está disponível na Netflix.