A literatura russa se destaca no cenário editorial brasileiro neste 2021, com obras e autores apresentados ao público ou alcançando visibilidade por meio de elogiadas traduções. Em abril, Irineu Franco Perpétuo apresentou o guia “Como ler os russos”; em novembro, foi lançada a primeira tradução nos países lusófonos de “Tchevengur”, obra referencial de Andrei Platônov, chamado de “Guimarães Rosa russo”. No início deste mês, chegou às livrarias “Marina Tsvetaeva: Textos exilados”, fruto da pesquisa de pós-doutorado da tradutora Ana Alvarenga.
Apesar de sua vasta obra, que inclui poemas – pelos quais é mais conhecida – e também prosa, peças teatrais, composições musicais, cartas e diários, Marina Tsvetaeva tem pouquíssimos livros traduzidos no Brasil. Ana Alvarenga acredita que mesmo em âmbito global, se for considerada a grandeza quantitativa e qualitativa de seu legado, trata-se de autora pouco lida e pouco estudada.
“Marina começa a despontar aqui, onde ainda é muito desconhecida. Salvo engano, o livro que lancei é a terceira ou quarta tradução dela no Brasil. Na França, onde viveu exilada por muitos anos, já há uns 15 livros traduzidos. Por lá, o número de traduções vem aumentando, mas a leitura ainda é tímida. Mesmo na Rússia, Marina demorou para se fazer conhecer”, diz a tradutora.
Ana Alvarenga começou a se dedicar à russa justamente em sua temporada na França. Diante da extensão da obra de Tsvetaeva, optou por se concentrar nas cartas e diários, que considerou o melhor caminho para entrar na intimidade dela.
“Como era um ser em permanente exílio, literal e existencial, a correspondência foi crucial na vida dela, porque estava o tempo todo tentando traduzir a própria vida. Marina se correspondia com gente que conhecia e também com quem não conhecia, e essa era uma forma de se traduzir”, aponta.
''Na mesma medida em que vivia a plenitude da felicidade, vivia a plenitude da tristeza, e isso se intercalava em sua vida. A tragédia está completamente marcada na escrita dela, porque Marina estava justamente transcrevendo sua existência''
Ana Alvarenga, tradutora
Sem ter, a princípio, noção da amplitude do talento da autora russa, Ana Alvarenga mergulhou nos livros traduzidos para o francês – a maioria trazia correspondências, além de dois grandes diários, um deles escrito no período em que Marina viveu na França. Diante dessa obra, ficou claro o desejo de traduzir as cartas. “Mesmo assim, eu ainda estava às voltas com uma infinidade de textos”, destaca.
“CARTAS A ANA”
“Embora tenha lido vários outros livros, como ‘Correspondência a três’, em que ela troca cartas com Rainer Maria Rilke e Boris Pasternak, fui ao ‘Cartas a Ana’. Marina tinha essa correspondente, a mais fiel e recíproca, que se chamava Ana e morava na Tchecoslováquia. Foi o material que mais me tocou, nem teve a ver com a coincidência do nome”, explica.
Ana lia Marina já fazendo os fichamentos e, a partir deles, coletava fragmentos que viria a publicar em “Textos exilados”.
“Quando fui rever os fichamentos, me dei conta de que quase 100% eram do ‘Cartas a Ana’. Foi o que sobrou de tudo o que fui lapidando”, observa. Com relação aos diários, dos quais também foram extraídos fragmentos que compõem a recém-lançada tradução, Ana Alvarenga diz que eles revelam uma autora obsessiva, que procurava registrar absolutamente tudo o que observava e sentia, chegando a ponto de registrar quantas palavras a filha falava em diferentes idades ao longo da infância.
“O mais genial é que ela leva para os diários um domínio da língua e um domínio filosófico gigantescos. Marina tinha enorme domínio da gramática, da sintaxe, de tudo. Então, era uma tentativa literária de detalhar a vida”, explica Ana Alvarenga.
“Cartas e diários foram os textos que me trouxeram o mais íntimo de Marina como mulher, como filha, como mãe e em termos de formação intelectual. Foi minha forma de entrar na subjetividade dela”, diz.
Nascida no seio da aristocracia, Marina Tsvetaeva teve uma vida de contornos trágicos a partir da segunda década do século 20, às voltas com degredo, a miséria e a morte. Esse ingrediente está, segundo Ana, presente de forma marcante em seus textos.
“Na mesma medida em que vivia a plenitude da felicidade, vivia a plenitude da tristeza, e isso se intercalava em sua vida. A tragédia está completamente marcada na escrita dela, porque Marina estava justamente transcrevendo sua existência. Muito nova, já falava em suicídio, que não ia dar conta, falava que não cabia nesta vida”, ressalta.
A primeira obra da russa que Ana Alvarenga leu, “Vivendo sob o fogo: Confissões, compilação de cartas, poemas e diários”, a fez entender que precisaria adotar metodologia especial para delimitar os temas abordados pela autora. Organizado por Tzvetan Todorov, o volume foi traduzido para o português por Aurora Fornoni Bernardini.
''O mais genial é que ela leva para os diários um domínio da língua e um domínio filosófico gigantescos. Marina tinha enorme domínio da gramática, da sintaxe, de tudo''
Ana Alvarenga, tradutora
“Este livro é um calhamaço de 750 páginas. Usei cores, grifava de azul tudo o que ela falava sobre o amor, de amarelo o que era sobre tristeza, de vermelho o que era a história da União Soviética”, revela.
Isso permitiu a Ana chegar ao que chama de sete significantes, em torno dos quais os fragmentos reunidos em “Textos exilados” orbitam: vazio, exílio, estrangeiro, partida, natureza, amor e morte.
Presente já no título, a questão do exílio é central na obra de Marina. “Me refiro ao exílio propriamente dito, literal, porque ela foi exilada durante muitos anos, e também ao exílio existencial, no sentido de ela se sentir sempre alguém de fora, de não se ver incluída em nenhum círculo”, diz.
MÚSICA
Assim como Marina Tsvetaeva, que deixou diversas composições, Ana Alvarenga é musicista e integra, ao lado da mãe e da irmã, o Capella em Trio. Esse ponto de convergência acabou reforçando a interação da brasileira com a russa.
“Quando traduzimos, fazemos muito uso de dicionário, é o terceiro corpo entre o tradutor e a língua traduzida. A música, para mim, foi como dicionário, o terceiro corpo que me permitiu traduzir o que estava lendo de Marina. Usando o conceito de Haroldo de Campos, ‘transcriei’, o que passa pela ideia de traduzir literatura em música, áudio, vídeo, em outras expressões”, diz.
Há outra coincidência: pelo fato de a mãe de Marina ter sido pianista, assim como a mãe de Ana, a presença da música vem desde a infância para ambas.
Orientadora de Ana no pós-doutorado, Lucia Castello Branco sugeriu que ela fizesse as traduções de forma orgânica durante suas pesquisas na França. “Num dado momento, entendi que estava traduzindo do francês para o português a obra de uma autora que escrevia em russo. Comecei a tradução diretamente do russo para o português por meio da música, cantando em português as músicas que Marina escreveu em russo”, explica.
Ana Alvarenga se dedicou durante um ano e meio ao estudo da língua russa para balizar seu trabalho. “Adotei três procedimentos diferentes: traduzir, ‘transcriar’ e transpor”, conta.
No posfácio de “Textos exilados”, Lucia Castello Branco escreve: “Não é preciso dizer que Ana se lançou, imediatamente, nessas práticas, seja viajando para a França, no início de seu estágio pós-doutoral, para recolher imagens dos lugares habitados e das paisagens percorridas por Marina Tsvetaeva e por ela mesma, em sua adolescência; seja realizando um enorme volume de traduções de cartas, poemas e textos ensaísticos da poeta russa, escritos em francês; seja ingressando em aulas particulares da língua russa; seja ainda compondo um show verbovocovisual para terrenos baldios, que terminou por se desdobrar em um CD e em um filme sobre, com e para Marina.”
Trágica jornada
A moscovita Marina Tsvetaeva (1892-1941) nasceu em família próspera e culta. Adolescente, já dominava o francês e o alemão. Quando estourou a Revolução Russa, ela tinha duas filhas com Serguei Efron, que lutava contra os bolcheviques. Viveram em extrema miséria – uma das meninas morreu de fome em 1919, aos 4 anos. Em 1922, Marina se exilou em Praga, seguindo para a França em 1925, ano em que teve o filho Georgy. Ignorada por quem não falava russo e incompreendida nos círculos literários dos emigrados, ela sustentou marido e filhos com trabalhos esporádicos e a ajuda de amigos. Em 1939, voltou à Rússia para se juntar a Efron e à filha. O marido foi fuzilado e Ariadna enviada a um campo de prisioneiros na Sibéria. Em 1941, quando a Alemanha invadiu a União Soviética, Marina e o filho foram evacuados para Elábuga, na república tártara. A escritora se enforcou lá, aos 48 anos.
''MARINA TSVETAEVA: TEXTOS EXILADOS''
. Tradução de Ana Alvarenga
. Cas’a Edições
. 100 páginas
. R$ 40
. À venda no site da editora(https://casaedicoes.com/)
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