"Havia tantos lugares para onde eu poderia ir, porque há tantas pessoas absurdas que se colocaram em público recentemente. Foi divertido montar esse personagem, que vai acumulando poder, dinheiro, mais poder e mais dinheiro"
Meryl Streep, atriz
Um cometa do tamanho do Everest está em rota de colisão com a Terra. Em seis meses, o planeta vai virar pó. Quem faz a descoberta aterradora é uma doutoranda, Kate Dibiasky, e seu professor em uma universidade de Michigan, o astrônomo Randall Mindy. Mais do que prontamente, a dupla avisa às autoridades. E ainda mais rapidamente eles são levados à Casa Branca para contar sobre sua descoberta para a presidente Orlean. E é aí que as coisas começam a se complicar.
Com estreia nesta sexta-feira (24/12), na Netflix, “Não olhe para cima”, de Adam McKay, mistura crise climática, polarização política, mídia de celebridades, negação da ciência, fake news, gigantes da tecnologia e outras questões urgentes em uma comédia de humor negro divertida, certeira e, por vezes, um tanto destrambelhada. E com um elenco estelar, uma reunião do primeiro time de Hollywood.
Leonardo DiCaprio interpreta o astrônomo Randall Mindy, nerd, ansioso, viciado em Xanax, que se sente mal fora de sua área de conforto. Jennifer Lawrence é a voluntariosa e genial estudante Kate Dibiasky, que quer fazer o certo, custe o que custar. Meryl Streep é a presidente Orlean, claramente calcada em Donald Trump. Jonah Hill, seu filho e chefe de gabinete, tão preconceituoso e em busca de interesses próprios quanto a mãe.
O desfile continua: Cate Blanchett e Tyler Perry formam uma dupla de âncoras que não podem dar notícias ruins sem mostrar um viés positivo; Mark Rylance é um magnata da tecnologia britânica que acha que o dinheiro pode resolver tudo, até um cometa destruidor; Ariana Grande uma pop star que admite uma traição e aceita o pedido de casamento do namorado famoso pelas redes sociais; Timothée Chalamet um jovem perdido com a perspectiva do fim do mundo que não quer nada além de beber e beijar na boca.
"Agora há, definitivamente, vacina, mas na época (das filmagens) não, então todos tínhamos que usar máscaras, ficar longe uns dos outros e em zonas diferentes. Diante disso, tivemos que encontrar uma maneira de ser criativos, o que de certa forma foi genuinamente comovente"
Adam McKay, diretor
RECEITA
"Agora há, definitivamente, vacina, mas na época (das filmagens) não, então todos tínhamos que usar máscaras, ficar longe uns dos outros e em zonas diferentes. Diante disso, tivemos que encontrar uma maneira de ser criativos, o que de certa forma foi genuinamente comovente"
Adam McKay, diretor
McKay buscou educar os espectadores sobre a crise financeira mundial de 2008 usando monólogos de estrelas do cinema em “A grande aposta” (2015). Também promoveu quebras de quarta parede e metáforas para falar do cinismo político em “Vice” (2018).
A receita é semelhante em “Não olhe para cima”, ainda que sejam muitos lados aqueles nos quais ele atira. São inúmeras referências diretas ao mundo real – sempre na forma de piada, muitas delas passando ao largo do tom politicamente correto dos tempos atuais. E, em mais de um momento, elas funcionam.
Uma entrevista coletiva virtual realizada com jornalistas de todo o mundo, da qual o Estado de Minas participou, reuniu boa parte dos nomes citados acima. Mediada pela astrônoma Amy Mainzer, que atuou como consultora do filme, a conversa on-line versou mais sobre a crise climática e as consequências do negacionismo. Em dado momento da narrativa do filme, o mundo divide-se basicamente entre aqueles que olham e os que não olham para cima (referindo-se àqueles que acreditam e aos que desacreditam da chegada do cometa destruidor).
“A crise climática é tão opressora e é, indiscutivelmente, a maior ameaça à vida na história da humanidade. Mas se você é capaz de rir, isso significa que você tem alguma distância e realmente acho que isso é importante. Depois da loucura dos últimos cinco, 10 anos, em todo o planeta, não seria bom rir e também sentir outros sentimentos?”, afirmou McKay.
Ambientalista e representante da Organização das Nações Unidas (ONU) para as mudanças climáticas, Leonardo DiCaprio comentou que tanto o seu personagem quanto o de Jennifer Lawrence foram inspirados em pessoas com quem ele conviveu. “São pessoas da comunidade científica que conheci, cientistas do clima que vêm tentando comunicar a urgência deste problema. Muitos sentem como se estivessem relegados à última página do jornal.”
“Adam ‘decifrou o código’ com este filme. Quer dizer, há tantas comparações que podemos fazer para a crise climática com esse enredo. E acho que é preciso artistas como ele para mudar a narrativa, criar outro tipo de conversa”, comentou DiCaprio.
No início da história,o astrônomo Mindy e sua pupila Dibiasky (o cometa inclusive é batizado com o sobrenome da personagem de Jennifer Lawrence, já que foi ela quem o descobriu) estão unidos pela intenção de fazer o que é certo (e o que a ciência provou) e revelar ao mundo o que está prestes a ocorrer. Mas, à medida que se envolvem com o poder, acabam tomando caminhos distintos.
"Adoro a maneira como o meu personagem é incrivelmente sincero sobre como estamos imensamente distraídos da verdade hoje em dia"
Leonardo DiCaprio, ator
SISTEMA
"Adoro a maneira como o meu personagem é incrivelmente sincero sobre como estamos imensamente distraídos da verdade hoje em dia"
Leonardo DiCaprio, ator
O professor, de certa forma, se acomoda e resolve entrar no jogo do sistema. A aluna, nas palavras de DiCaprio, envereda como uma Greta Thunberg (a ativista ambiental sueca) cada vez mais radical. “Adoro a maneira como o meu personagem é incrivelmente sincero sobre como estamos imensamente distraídos da verdade hoje em dia”, acrescenta o protagonista.
O senso de urgência se tornou maior porque “Não olhe para cima” começou a ser produzido na fase inicial da pandemia. “Agora há, definitivamente, vacina, mas na época (das filmagens) não, então todos tínhamos que usar máscaras, ficar longe uns dos outros e em zonas diferentes. Diante disso, tivemos que encontrar uma maneira de ser criativos, o que de certa forma foi genuinamente comovente”, acrescentou o diretor.
A pergunta para Meryl Streep era mais do que obrigatória: afinal, quem foi sua inspiração para criar a presidente Orlean?. Entre risos, a atriz, sem citar nomes, respondeu que “havia tantos lugares para onde eu poderia ir, porque há tantas pessoas absurdas que se colocaram em público recentemente. Foi divertido montar esse personagem, que vai acumulando poder, dinheiro, mais poder e mais dinheiro.”
Tyler Perry, que interpreta o apresentador Jack Bremmer, que só dá importância a notícias que possam aumentar a audiência de seu programa matinal, afirmou que uma das cenas que o deixaram desconfortável se desenrola no Salão Oval. “Quando a personagem da Meryl está falando com seu filho sobre descartar os fatos e a ciência. Isso me soou muito verdadeiro, especialmente no momento da pandemia em que o país estava, com todo mundo dizendo coisas contra a verdade.”
Os disparates que saem dos altos escalões do governo, somados à desinformação da imprensa e à sede por cliques nas redes sociais, vão num crescendo, até que, em determinado momento, o personagem de DiCaprio, que se tornou uma espécie de relações-públicas do fim do mundo, tem um ataque de “sincericídio” em rede nacional.
Esse é um dos momentos preferidos do filme para o diretor. “Devemos ter reescrito a fala umas 20 vezes. “Algumas vezes, só temos que ser capazes de dizer coisas um para o outro. Nem tudo tem que ser charmoso ou positivo, mas acho que há essa demanda, porque há muito dinheiro atrás da mídia, com publicidade, cliques, aplicativos. Me parece ser essa a linha básica de tudo o que foi corrompido, pois lucram com tudo o que falamos com os outros via redes sociais, telefones, programas de TV. Agora não os chamam mais nem de programa de TV ou música, mas ‘conteúdo’. É uma loucura pensar nisso.”
“NÃO OLHE PARA CIMA”
(EUA, 2021, 138min, de Adam McKay, com Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Meryl Streep, Jonah Hill e Cate Blanchett) – Estreia nesta sexta (24/12), na Netflix