Em 1972, recém-chegado de Londres, Caetano Veloso iniciou uma turnê do álbum “Transa”, gravado no período do exílio. Em Salvador, recebeu uma intimação para que se apresentasse antes do show para um censor. Encontrou-o na figura de seu antigo professor de metafísica do curso de filosofia. Era o antigo padre Pinheiro, que havia largado a batina e iniciado carreira no órgão de fiscalização e repressão da ditadura militar (1964-1985).
O ex-padre encasquetou com uma música, “Nine out of ten”. Queria suspender o show por causa do primeiro verso, “I walk down Portobello Road to the sound of reggae” (“Eu desço a Portobello Road ao som do reggae”). Pinheiro e sua equipe haviam feito extensa pesquisa e não encontraram um significado para reggae. Se não sabiam o que era, melhor reprimir.
Caetano tentou dissuadi-lo, dizendo que aquele era um ritmo novo, jamaicano, que ele conheceu em Portobello Road e que a palavra ainda não estava no dicionário. O ex-religioso aceitou o argumento com uma condição: se o ex-aluno estivesse mentindo, ele seria preso de novo.
Tal acontecimento, 50 anos mais tarde, diz muito sobre ameaça, medo, mediocridade, ignorância, pequeno poder, tudo o que acompanhou um dos períodos mais repressivos da história brasileira. Mas o caso, contado de forma anedótica pelo próprio Caetano, é uma forma de apresentar “Mordaça: Histórias de música e censura em tempos autoritários” (Sonora Editora), dos jornalistas João Pimentel e Zé McGill.
NOVIDADES
O tema, como um todo, já foi tratado em livros, pesquisas, documentários e entrevistas. Mas o formato é inédito – e muitas das histórias reunidas, que vêm agora à tona pela voz dos próprios censurados, ganham nova luz. A ditadura, a prisão e o exílio são assuntos que o próprio Caetano tratou em outras ocasiões – como no recente documentário “Narciso em férias” (2020). A história do reggae, no entanto, é nova. E casos assim vão surgindo nas páginas do livro.
“Mordaça” reúne 29 capítulos que se referem a 29 compositores atingidos pela tesoura da censura: Chico Buarque, Odair José, Gilberto Gil, Beth Carvalho, Joyce, Jorge Mautner, Marcos Valle, Léo Jaime, entre outros. E não só durante o período militar, vale dizer, ainda que os depoimentos do período formem a maior parte do volume. Há ecos até a atualidade, como revela o rapper BNegão em um dos últimos relatos da obra, citando caso ocorrido em 2019, em Bonito, no Mato Grosso do Sul.
No final de 2017, a dupla de jornalistas cariocas, que não se conhecia, foi convidada pela Sonora para fazer o livro. A intenção da editora era lançar o volume no final de 2018, com o recorte da censura decorrente do Ato Institucional Número 5 (AI-5), que inaugurou o período mais sangrento da ditadura e completaria 50 anos em dezembro daquele ano.
“Logo vimos que não conseguiríamos entregar o livro a tempo. No meu caso, no início não me empolguei, pois a questão da censura já havia sido muito falada. Mas quando comecei as pesquisas e entrevistas, me fiz uma pergunta que voltava sempre: como é possível que ninguém tenha escrito um livro como este até agora?”, comenta Zé McGill. Ou seja, o tema permeou várias obras, mas não da maneira como a dupla se propôs a trabalhar.
Para João Pimentel, a percepção de como o livro poderia vir a ser chegou durante uma das primeiras entrevistas para a obra. Conversando com Joyce, perguntou a ela do que se lembrava da virada de 31 de março para 1º. de abril de 1964, quando houve o golpe militar. “Ela me disse que era uma menina que gostava de praia, violão e bossa nova, e a única lembrança que tinha era de que, como morava em um prédio em Copacabana onde havia muitos funcionários públicos, se recorda deles acendendo velas, rezando e tomando vinho do Porto.”
Em 1968, Pimentel conta, Joyce era outra pessoa. “Ela deu um salto, tornou-se a primeira compositora a tratar da questão feminista, se transformou muito.” A conversa foi seguindo e chegou até os tempos atuais, quando a dupla comentou que, depois de tudo o que aconteceu, ocorreu uma “volta ao pensamento obscuro, a uma tentativa de perseguição à arte, à cultura e ao pensamento.” Pimentel deixou a entrevista sabendo que havia encontrado o fio para desenvolver o livro.
TORTURA
“O assunto, para quem viveu uma ditadura, como o Geraldo Azevedo, que sofreu tortura, é muito difícil. Mas acho que este momento (da gestão Bolsonaro) fez com que as pessoas ficassem com mais vontade de falar. Acho que ‘Mordaça’ é também um livro para você lembrar que muita coisa ruim existiu”, afirma Pimentel. “Fiquei com a sensação de que muitos dos entrevistados estavam com o assunto censura entalado na garganta e só esperando que alguém perguntasse a eles”, comenta McGill.
Os autores decidiram incluir somente histórias de personagens censurados vivos que pudessem (e quisessem) dar o seu depoimento para o livro. Houve algumas tentativas frustradas, caso de Rita Lee, Milton Nascimento, Ângela Rô Rô. Mas a coleção de depoimentos – e a riqueza de detalhes de vários deles – preenche eventuais lacunas.
“Tentei muito falar com o Aldir (Blanc), que era amigo meu, mas, nos últimos dois, três anos ele quase não falou com ninguém, estava deprimido. ‘O bêbado e o equilibrista’ foi o hino da Anistia, então ele tinha que aparecer de forma mais consistente no livro”, diz Pimentel. Ele fez uma longa entrevista com João Bosco, que falou da relação com a censura e de outra personagem essencial para a história, Elis Regina.
Os textos, divididos entre cada um dos dois autores, vão se revelando aos poucos. Chico Buarque, um dos autores mais censurados, sofreu a primeira canetada em 1966, com “Tamandaré”. Edu Lobo é um caso único: teve duas instrumentais censuradas, “Casa forte” e “Zanzibar” (com isso, os autores apontam para a total falta de noção das pessoas que integravam os órgãos de repressão).
Evandro Mesquita ri ao relembrar que fez os censores dormirem. Em 1977, o futuro vocalista da Blitz era integrante da trupe Asdrúbal Trouxe o Trombone. Antes das apresentações teatrais, os censores tinham que assistir ao espetáculo. Pois ele durava quatro horas e meia – quando Mesquita olhou para a plateia, dois censores haviam pegado no sono. Caetano, antes de ser preso com Gil no fim de 1968, nunca havia tido uma canção censurada.
CENSORES
Os autores tentaram contato também com antigos censores – não conseguiram falar com ninguém. Mas uma das figuras “do lado de lá” que mais marca presença no livro é Solange Hernandez, conhecida como Dona Solange ou “Tesourinha”. Entre 1981 e 1984, à frente da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), ela interditou 2,5 mil canções.
Uma de suas principais vítimas foi Léo Jaime. Os dois nunca se viram, o compositor conta, mas acabaram desenvolvendo uma relação, com troca de bilhetes e uma jocosa homenagem. Nos anos 1980, conta Léo Jaime, ele dividia apartamento com Leoni. Um dia, vendo uma partitura do The Police, Léo gritou para Leoni do quarto: “Que música é essa, ‘So lonely’?”
O companheiro, sem ouvir direito, respondeu perguntando: “Solange?”. Foi o que bastou para que Léo tivesse o estalo para a canção que homenageou a censora: “Você é bem capaz de achar/Que o que eu mais gosto de fazer/Talvez só dê para liberar/Com cortes para depois do altar/Solange, Solange, Solange”. A “Tesourinha” adorou e não tirou uma vírgula.
Falando de tempos mais recentes, o livro chega a histórias pós-ditadura, como a ruidosa prisão do Planet Hemp em 1997 por apologia à maconha – o caso começou em Belo Horizonte, onde a banda foi detida durante a madrugada do show que faria, e prosseguiu em Brasília, onde os integrantes ficaram presos por cinco dias.
O relato é feito por BNegão, que, 22 anos mais tarde, sofreu com censura em um show no Festival de Inverno de Bonito, interrompido pela polícia local – o estopim teria sido a agressão que um produtor local havia sofrido na noite anterior. “Vimos que teríamos que deixar claro que a censura não é só da época da ditadura, ainda que seu auge tenha sido naquele período”, afirma McGill.
Tanto que os autores escreveram o posfácio, “Censura nos anos Bolsonaro”, em que recuperam casos de repressão política em atividades e produções culturais do período mais recente. São exemplos o adiamento de dois anos para o lançamento do filme “Marighella”; o cancelamento da exposição “Queermuseu”, em Porto Alegre; o ataque sofrido pela produtora Porta dos Fundos após o lançamento do filme “A primeira tentação de Cristo”, que foi tirado do ar pela Netflix por liminar da Justiça carioca.
“MORDAÇA: HISTÓRIAS DE MÚSICA E CENSURA EM TEMPOS AUTORITÁRIOS”
João Pimentel e Zé McGill
Sonora Editora
(340 págs.)
R$ 69,90