Jornal Estado de Minas

MÚSICA

Em shows, Sérgio Pererê ressalta ligação da música de Milton com a África


Sérgio Pererê quer terminar o ano “abençoado”, trazendo para perto de si e de seu público uma entidade da música capaz de emanar essas bênçãos. Essa é uma das razões, entre tantas outras de cunho afetivo e histórico, que justificam a série de shows “Canto negro para Milton Nascimento”.





Nos quatro dias de show, a partir desta terça-feira (28/12), ele repassa, ao lado de convidados, a obra de Bituca, sua maior inspiração artística. Acompanhado por sua banda, Pererê desfila as músicas de Milton em nova roupagem, que ressalta sua relação com a África.

Gravadas no teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas, as apresentações serão exibidas pelo canal do cantor e compositor no YouTube. Participam Ohana, Jéssica Gaspar, Guilherme Ventura, Douglas Din, Tamara Franklin, Raphael Sales, Robert Frank, Azulla, Nath Rodrigues e Tom Nascimento. 

A cada dia, o público poderá conferir Pererê dividindo o palco com esses nomes para interpretar um repertório que foi montado a partir das escolhas dos próprios convidados. “Falei da homenagem e perguntei a cada um o que gostaria de cantar do Milton. Alguns tiveram dúvidas, daí eu sugeria, pensando no que encaixaria melhor em termos de tom e de timbre. A partir das 10 músicas pensadas com cada convidado, fui me organizando, vendo outras coisas”, diz. 





Essa organização do repertório, bem como a escolha dos artistas que participam dos shows, passou pelo desejo de realçar a negritude da obra de Milton, segundo Pererê. Ele diz que quis acentuar a africanidade, por isso escolheu canções que permitissem de forma mais concreta uma ponte com esse universo. 

Temas como “Louva-a-Deus”, “Janelas para o mundo” ou “Filho” são executados com instrumentos africanos, como a mbria, presente em Moçambique e no Zimbábue, a ilimba, típica da Tanzânia, o djeli ngoni, comum no Mali e no Senegal, e o tambor falante, oriundo da Nigéria, do Senegal e de Burkina-Faso.

ROTEIRO 


Pererê aponta que o repertório abarca, ainda, temas como “Cio da terra”, que diz cantar desde pequeno, “San Vicente”, que aparece na série de shows em duas versões, “Cravo e canela”, “Circo marimbondo”, “Bola de meia, bola de gude”, “A lua girou” e também o que ele considera clássicos incontornáveis, como “Ponta de areia”, “Maria, Maria” e “Travessia”. “Vim desenhando esse roteiro musical com o coração. É muito impressionante a potência da música de Milton”, destaca.





Pererê comenta que a presença da música de Milton em sua vida foi uma constante. “Tem uma passagem bonita, embora triste, que foi quando meu pai faleceu. Minha mãe pediu que eu cantasse alguma coisa que o Milton gravou, porque meu pai também sempre gostou muito. Um mês depois da morte dele, me encontrei com Milton, eu ainda estava no Tambolelê, e fizemos um show juntos no Palácio das Artes”, recorda, acrescentando que, a partir dali, aconteceram outros encontros importantes com o homenageado.

Ele diz que, logo depois do show no Palácio das Artes, acompanhou, com seu grupo e com Maurício Tizumba, Milton em um show no Lincoln Center, em Nova York, e, um mês depois, voltaram a se apresentar juntos, na Serraria Souza Pinto. “Foi uma sequência esparsa de encontros, sempre muito bons”, diz. Pererê ressalta que a relação com Milton se estreitou ainda mais a partir do espetáculo “Bituca – Vendedor de sonhos”, que ele estrelou ao lado de Tizumba, Titane e Laura Castro.
A série de shows gravados no teatro do Minas Tênis Clube conta com a presença de 10 convidados, entre eles o cantor Tom Nascimento (foto: Fotos: Tamás Bodolay / divulgação )


EMOÇÃO 


“Fizemos uma temporada no Rio de Janeiro e ele foi nos assistir, esperou o público todo sair e veio comentar com a gente, muito emocionado, sobre a minha interpretação e sobre os arranjos. Senti que tinha cumprido minha missão. Milton, como artista, só me trouxe alegria o tempo todo. A música dele sempre me deu vontade de viver mais, e já tive a chance de falar isso para ele”, diz.





Com “Canto negro para Milton Nascimento”, Pererê convida o público a participar da homenagem. “Esses shows ao longo de quatro dias são um presente para ele, para nós e para quem estiver disposto a viver essa experiência. Quando decidi reunir algumas das pérolas que o Milton tem e colocar num festival, com vários artistas convidados, foi no intuito de homenagear mesmo.”

Num cenário de pandemia, a iniciativa representou, também, uma forma de o cantor e compositor estar próximo de artistas que admira e que são grandes amigos seus. “Criamos a ideia do ‘Canto negro para Milton Nascimento’ trazendo cantores e cantoras negras, colocando a voz do Milton dentro desse lugar, que é legítimo, mas nem sempre observado. Como o barroco está muito presente na cultura de Minas, a gente às vezes se esquece de que ela também está impregnada de africanidade”, afirma, ressaltando que procurou trazer a música do homenageado para dentro de seu próprio universo.

Nesse sentido, Pererê fala em “transcriação” da obra de Milton. “Falo isso até para não dar margem para comparações. Amo o Milton do jeito que ele é, mas jamais conseguiria cantar a obra dele como ele canta, por isso trago para meu universo o que tem a ver com meu canto e com os instrumentos que toco, meus tambores. Não é para procurar semelhanças, pelo contrário, é para observar as diferenças. Aí é que está o brilho da coisa”, aponta.





Ao longo de sua trajetória, tanto com o grupo Tambolelê, a partir de meados dos anos 90, quanto na carreira solo, Pererê construiu uma vasta rede de parcerias. Com um amplo trânsito na cena musical não só de Minas, mas do Brasil, ele teria uma enorme e variada gama de artistas para convidar para participar da série “Canto negro para Milton Nascimento”. A relação de amizade, de admiração e o diferencial de cada um dos 10 artistas que estão presentes no projeto foi o que norteou a escolha dos nomes, conforme explica.

CONVIDADOS 


“Quis chamar vozes muito impressionantes e distintas, que chegam bem aos meus ouvidos, cada uma de uma forma. Quando chamo o Tom Nascimento, é porque tem um timbre raro e que me agrada muito escutar. Já o Guilherme Ventura tem uma leveza, uma suavidade no canto que também me agrada. O Douglas Din vem do universo do rap, do Duelo de MCs, e mergulha num outro lugar melódico, com muita propriedade no uso da palavra. Nessa mesma linha, trouxe Tamara Franklin e Ohana, que também vêm do universo do hip-hop, mas já dialogando com outras coisas”, comenta.

Pererê se entusiasma ao falar de seus convidados e faz questão de iluminar o que considera notável em cada um, como “a voz apaixonante” de Jéssica Gaspar e o “timbre especial” de Robert Frank, de quem diz ser admirador há muito tempo, também por seu trabalho como ator e artista plástico. Com Azulla e Nath Rodrigues, que integrou sua banda como instrumentista (“É o tipo de artista que joga em várias posições”, destaca), ele afirma ter uma relação próxima que vem de há muito tempo. Sobre Raphael Salles, diz ficar encantado com a doçura de sua voz
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“De fato, eu teria mais um tanto de gente para chamar, muitas pessoas, porque uma coisa que sempre digo é que tenho muito amor por essa cena artística de Belo Horizonte e de Minas Gerais. Daria para fazer uma longa história só com a moçada que está atuando aqui.”

Ele ressalta que esse conjunto de vozes unidas à sua própria está a serviço de uma obra e de um artista que reverberam em esfera planetária. “Acho que Milton ensinou ao mundo um outro jeito de ser artista. Ele não trabalha em cima dos padrões convencionais, nem no jeito de estar no palco, nem no jeito de cantar, nem no jeito de compor. Tem ali elementos muito diferentes de qualquer outra coisa que você já tenha visto”, diz, apontando também a capacidade que seu homenageado tem de driblar expectativas.

“Quando se esperava que Milton poderia estar mais pop, ele vai para o Xingu e traz uma experiência ligada aos povos indígenas. Quando você acha que ele poderia estar indo para um outro lugar, mais global, ele mergulha na sonoridade do congado. Quando você espera que ele chegue com novas composições, ele aparece com o álbum ‘Crooner’, em que se coloca como intérprete, com as coisas de baile que cantava na juventude”, exemplifica.





“Me dá a sensação de que Milton não fez tentativas, ele sempre propôs, o tempo inteiro, o que para mim é uma coisa muito ousada. É um cantor que você não vai ver no palco tentando ganhar ou seduzir o público com nada além da música. Em qualquer lugar do mundo, ele é entendido como Milton Nascimento; não é blues, não é samba, não é bossa, é Milton Nascimento. Ele ensinou que a gente pode ser do jeito que é, não precisa seguir nada. A trajetória dele como artista é uma expressão da verdade”, diz.

CARREIRA 


Pererê destaca que aprendeu essa postura com Milton e sempre a aplicou em sua própria trajetória. Em uma entrevista recente ao Estado de Minas, seu filho, Imane Rane, que lançou seu primeiro EP neste ano, disse não se iludir com a vida de artista, porque acompanha de perto a do próprio pai. 

“A carreira não necessariamente está relacionada com fama, sucesso, dinheiro. É claro que o palco é uma energia extracotidiana, mas a música é minha caminhada e minha construção diária. Meus filhos veem assim também”, aponta, acrescentando que às vezes fica assustado com a pressão do mercado sobre os artistas jovens.





“Tenho visto artistas incríveis que se sentem pressionados pelo mercado, pela necessidade de atender às demandas de streaming, de fazer música em formatos aceitáveis para o mercado. Acho que fazer música é um negócio da alma, então não tem que sofrer muito para atender a demandas que não são nossas. Aquilo que você tiver de verdade vai ser para sempre. É fazer a nossa arte com alma, isso é o que vai dar resultado.”

“CANTO NEGRO PARA MILTON NASCIMENTO”
Sérgio Pererê e convidados interpretam a obra de Milton Nascimento, numa série de quatro shows que serão exibidos a partir desta terça-feira (28/12), no canal do YouTube do artista

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