Aos 79 anos, o compositor e maestro Jorge Antunes está em plena atividade de criação. Ele acaba de lançar o CD duplo “Cordas dedilhadas” (Sesc), que reúne obras escritas para viola caipira, violão, harpa e alaúde barroco. Nas peças, Antunes promove uma desconcertante fusão de instrumentos tradicionais com elementos da música experimental e eletrônica. Ele convidou para participar do álbum os instrumentistas Marcus Ferrer (viola caipira), Roberto Corrêa (viola caipira) e Alvaro Henrique (violão).
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De que maneira se deu a sua iniciação à música e sua evolução como compositor?
Meus primeiros passos nas artes aconteceram nas artes plásticas, influenciado por meu pai que era pintor. Comecei a estudar música um pouco tarde: aos 14 anos. Desde os 6 ou 7 anos, eu queria estudar violino. Meus pais não eram músicos. Carlos Antunes, meu pai, era pintor acadêmico e tinha uma rica coleção de discos 78 de música clássica. Fui criado nesse ambiente. Minha família era pobre. Morávamos no bairro proletário de Santo Cristo, no Rio de Janeiro. Meu pai, além de pintor e melômano, era antiquário. Só quando fiz 14 anos é que ele conseguiu trocar um lampião antigo por um violino. Foi quando comecei a estudar o instrumento.
E de onde vem o gosto pelo diálogo com outras linguagens e a interação com as circunstâncias sociais e políticas?
O meu trabalho de junção da música com outras linguagens resulta dessa minha formação. No início dos anos 1960, participei de salões em que também debutavam Rubens Gerchman, Antonio Dias, Caciporé Torres, Roberto Magalhães e outros. Em 1963, bem antes das experiências semelhantes do Hélio Oiticica, eu construía "ambientes" multimídia. Em 1964, expus no MAM o “Ambiente I”, um cubo com 4 metros de aresta em que o público entrava descalço e usava os cinco sentidos: lá dentro estavam música eletrônica, odores, comestíveis e objetos e relevos a serem tocados e manuseados. Quando estudante secundarista do Colégio Pedro II, já atuava na política estudantil, abraçando lutas sociais. Esse ativismo teve continuidade quando ingressei na Faculdade Nacional de Filosofia, para o bacharelado em física. Depois, como presidente do Diretório Acadêmico da Escola de Música da Universidade do Brasil, atual UFRJ, a luta política passou a ser mais efetiva. Com o AI-5, em dezembro de 1968, fui demitido do Instituto Villa-Lobos, onde era professor e tive que me exilar no exterior. Nesse período fiz cursos pós-graduados e mestrado na Argentina, Holanda, Itália e França. O doutorado vim a concluir na Université de Paris VIII, só no final dos anos 1970, quando já era professor na UnB.
Que lugar o senhor atribui a figura do compositor?
A composição musical é um santo ofício. O compositor não é um cidadão comum. Ele é, em geral, um intelectual privilegiado cuja voz, que sai de sua obra e de sua boca, alcança ouvidos vários, numerosos e longínquos. É bem verdade que a internet, hoje, dá voz a todos. Mas a voz do compositor reverbera de modo especial. Assim, defendo o engajamento político do compositor. Quando domina os recursos da retórica musical, ele pode formar ou mudar mentalidades porque sabe injetar em sua obra o poder do convencimento, da eloquência, da sedução, da persuasão. Entendo que o compositor tem que se comover com as injustiças, reagir musicalmente e então sair da torre de marfim para cumprir plenamente sua função social.
Como situa essa série de peças para cordas gravada em CD na sua produção como compositor?
Neste CD duplo publicado pelo Selo Sesc, compilei minhas principais obras escritas para instrumentos de cordas dedilhadas: viola caipira, violão, harpa e alaúde barroco. Todas ocupam lugar de destaque em minha produção, porque as obras tratam de criar mundos sonoros e novas linguagens para esses instrumentos tradicionais. A viola caipira, por exemplo, ganha nova paleta sonora. O alaúde, acostumado ao modalismo barroco, passa a falar linguagem atual. A “Série Brasília 50”, para violão e sons eletrônicos e vozes pré-gravadas, é uma encomenda do violonista Alvaro Henrique. A obra ocupa lugar especial em minha produção porque é uma obra de fôlego que ainda está sendo escrita, e cuja execução integral durará cerca de oito horas. Ela é formada de mais 50 peças, cada uma inspirada em um importante evento político-cultural a partir de 1960. Por enquanto, compus apenas 20 peças. São as que estão incluídas nas 20 faixas do segundo disco do CD duplo.
Como concebe a mixagem do som do violão com elementos da música experimental?
Uso o violão com novos modos de execução, muitas vezes fazendo com que o som do instrumento ganhe timbres novos, se integrando ao universo sonoro eletroacústico. Só para exemplificar e o público leitor entender, lembro que existe um modo de tocar em que o violinista fricciona um copo de vidro nas cordas. Isso dá lugar a uma sequência belíssima de sons harmônicos. Por vezes, o ouvinte não saberá distinguir o que é violão e o que é eletrônico. Mas a coexistência pacífica das duas fontes sonoras distintas são muitas vezes realçadas de forma dialógica. Isso acontece para bem comentar o evento político em foco em cada uma das peças.
A política perpassa, de maneira dramática, o CD 2, com a “Série Brasília 50”. Como é conciliar o interesse político e o experimentalismo de sua música? Como ser político e não derrapar no meramente panfletário?
Na medida em que a profissão de músico e a atividade de compositor devem ser consideradas trincheiras bastante dignas, entendo que o panfletário deve ser evitado e condenado. A arte panfletária revela a deserção estética que leva ao imobilismo e à mediocridade. O panfletário presta grande desserviço à música e às próprias causas sociais.A mediocrização da música pode levar novas gerações, ávidas de gurus e novos modelos, a serem enganadas e desviadas do bom rumo. A falta de originalidade e a exaltação da mediocridade serão sempre atitudes deseducadoras. Então, a arte politicamente engajada não pode se abaixar fazendo concessões, diminuindo seu grau de complexidade. É essa a atitude que eu adoto.
Qual o seu interesse pela ópera como um gênero que pode incorporar as linguagens contemporâneas e experimentais?
Respondendo a uma de suas perguntas anteriores, eu falei de meu “Ambiente I”, de 1964, obra em que mesclei sons eletrônicos, imagens, objetos, odores, cores e elementos táteis. Foi quando eu comecei a teorizar sobre o que chamei de "arte integral". Meu interesse pelo gênero ópera se origina dessa minha vontade de junção de todas as vertentes artísticas. A ópera permite isso e vai mais além porque incorpora um novo elemento: o drama.
Como foi o processo de criação da ópera “Leopoldina” e qual a relevância de apresentar essa ópera neste momento da história brasileira?
A ópera Leopoldina foi escrita com apoio do Holding Icatu, que me concedeu o Prêmio Icatu de Artes 2020. O prêmio consistiu em uma bolsa financeira de um ano e meio e, com o apoio do Ministério da Cultura da França, uma residência artística na Cité Internationale des Arts, em Paris, com o fim específico de compor a ópera. Pedi ao poeta Gerson Valle, que foi o libretista de minha ópera “Olga”, para escrever o libreto de “Leopoldina”. Durante 19 meses de intenso trabalho em Paris, concluí a composição musical. A obra tinha e tem como motivação a possibilidade de o Brasil celebrar majestosamente o bicentenário da Independência em 2022. Poucos sabem que foi a imperatriz Leopoldina que, em 2 de setembro de 1822, incentivada por José Bonifácio, assinou o decreto que tornou o Brasil independente de Portugal. Dom Pedro estava em São Paulo. Cinco dias depois, ele recebeu a carta de Leopoldina relatando o fato e faturou o ato histórico. O que ficou registrado na história oficial foi o grito que Pedro ecoou às margens do Rio Ipiranga cinco dias depois.
Quando a ópera será apresentada no Brasil?
Infelizmente, a pandemia atrapalhou bastante os planos, fazendo com que todos os teatros de ópera brasileiros tivessem suas programações suspensas e represadas. Assim, as óperas programadas para 2022 em São Paulo, Manaus, Rio de Janeiro e Belém são aquelas que deveriam ter sido apresentadas em 2020 e 2021. Atualmente, a minha única esperança de ver programada a estreia de “Leopoldina” em 2022, está depositada em Brasília. Para tanto, precisamos de um milagre: que seja iniciada urgentemente a reforma do Teatro Nacional e que a Sala Villa-Lobos possa ser reinaugurada em setembro ou outubro de 2022.