Os Estados Unidos estão de portas fechadas para Woody Allen – leia-se cinemas, patrocinadores, atores e atrizes do primeiro escalão. As denúncias de quase 30 anos atrás de abuso sexual da própria filha, que voltaram à tona mais recentemente na esteira do movimento #MeToo, apagaram o cineasta em sua terra natal. Sem possibilidade de filmar em casa, o diretor que fez de Nova York seu parque de diversões arrumou as malas e foi para a Espanha.
Com pré-estreias diárias a partir desta quinta-feira (30/12), “O festival do amor”, seu 49º longa-metragem, é um legítimo filme de Woody Allen, a despeito do novo cenário e do elenco longe das estrelas que costumeiramente circularam por suas produções. O protagonista, como tantos outros, é um homem de meia-idade em crise no trabalho e na vida pessoal.
ROMANCISTA FRUSTRADO
Apaixonado pela filmografia clássica europeia, o americano Mort Rifkin (Wallace Shawn) já teve seus dias de glória como acadêmico do cinema, mas empacou como escritor. Nunca conseguiu se tornar o grande romancista que pretendia ser. Afinal, não faz sentido escrever um livro se ele não tiver a envergadura da obra de Dostoiévski, pensa ele.Um poço de neuroses (como não?), Mort decide ir como acompanhante da mulher, a relações-públicas Sue (Gina Gershon), ao Festival de Cinema de San Sebastián, no País Basco. Relutante, vai ao evento única e simplesmente porque quer salvar um casamento que, está na cara, já era. Exuberante, Sue está na Espanha para ciceronear o cineasta-sensação do festival, o francês Philippe (Louis Garrel), egocêntrico, pretensioso e vazio na opinião de Mort.
Não é difícil notar que o temor do protagonista tem sua razão de ser: a RP e o jovem diretor estão encantados um com o outro e ele, mais de uma vez, é deixado de lado durante o festival. Sem muito o que fazer, Mort passa a perambular por San Sebastián, entre conversas com conhecidos. A sensação de que está à beira de um ataque do coração o levam a conhecer a cardiologista Joana (Elena Anaya). Ela também prefere o cinema francês ao americano. O professor aposentado logo se imagina em um idílio amoroso com a médica.
Ainda que o cenário seja inédito, Woody Allen está pisando em terreno conhecido aqui. Falando de algo que conhece bem – e muitas vezes apontando a câmera de forma irônica para o mundinho ensimesmado dos festivais de cinema –, o diretor também presta homenagem aos grandes mestres.
Em seus devaneios noturnos, Mort surge em cenas clássicas do cinema. Ele está disputando Sue com outro homem, como aconteceu em “Jules e Jim – Uma mulher para dois”, de François Truffaut. Em outra sequência imaginária, o protagonista divide um cigarro na cama com a esposa, assim como fizeram Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg em “Acossado”, de Jean-Luc Godard.
O trenó rebatizado Rose Budnick remete a “Cidadão Kane”, de Orson Wells; Ingmar Bergman surge em duas recriações: “Persona” e “O sétimo selo” (a participação de Christoph Waltz é um dos achados do filme). Vários atores com diferentes graus de prestígio passeiam na tela nessas pequenas inserções em preto e branco.
SEM EMPATIA
No entanto, tais sequências, aliadas ao universo já conhecido da extensa filmografia de Woody Allen, não fazem com que o longa realmente decole. Wallace Shawn até se esforça, mas não consegue a empatia de tantos neuróticos que Allen levou para o cinema. Suscita, aqui e ali, alguns poucos sorrisos.Por outro lado, mesmo que menos inspirado, “O festival do amor” é um filme de resistência. Aos 86 anos, contra tudo e (quase) todos, Woody Allen ainda tem o que dizer.
“O FESTIVAL DO AMOR”
(Espanha/EUA/Itália, 2020, 88min, de Woody Allen, com Wallace Shawn, Gina Gershon e Louis Garrel) – Pré-estreias diárias a partir desta quinta-feira (30/12). Pátio Savassi, às 19h30 (exceto 31/12). Ponteio, às 14h10, 19h10 e 21h10 (em 31/12, apenas a primeira sessão; em 1º/1, as duas últimas sessões). UNA Cine Belas Artes, às 17h10 e 18h50 (exceto 31/12 e 1º/1).
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