Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Ana Maria Machado comemora 80 anos escrevendo sobre seus leitores


Durante a pandemia, com o isolamento forçado, Ana Maria Machado começou a escrever um livrinho muito delicado, dedicado a memórias de seus encontros com leitores. No texto, lembra várias ocasiões em feiras, palestras e lançamentos em que conversou com eles. São momentos que estavam guardados na lembrança, mas sobre os quais nunca pensou escrever.



Integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL), a autora fez um balanço de sua trajetória, durante o confinamento imposto pela COVID-19. “Me dei conta de como fui privilegiada não só de poder fazer pandemia com teto e comida na geladeira, mas com boas lembranças de bons encontros. A vida me deu presentes. E comecei a me lembrar dessas pequenas alegrias”, comenta.

COLEÇÃO DELAS


“Rastros e riscos” ganhou, primeiramente, o título “Pequenas alegrias discretas” no arquivo do computador da autora. O livro, que celebra os 80 anos de Ana Maria, completados em 24 de dezembro, faz parte da “Coleção Delas”, série da editora Ática dedicada a grandes escritoras brasileiras.

Além das memórias, a autora carioca lançou “Vestígios”, coletânea de 11 contos cuja publicação acabou adiada por causa da pandemia.

Escrever sobre encontros com leitores foi um exercício de reflexão. “Ao longo do tempo, conversei tanto com leitores que acho que essa troca se fazia oralmente. Escrevia para leitores, mas não sobre leitores. O fato de termos ficado quase dois anos fechados, sem contato direto, me fez escrever sobre eles”, explica.



“Não sou muito de redes sociais, então acho que esse mergulho para dentro de mim, esse balanço de estar fazendo 80 anos, trouxe a oportunidade de refletir sobre esses encontros”, observa.
“Rastros e riscos” é um livro afetuoso e amoroso, sentimentos que ajudaram Ana Maria a passar pelos dois últimos anos. Por outro lado, “Vestígios” não foi escrito durante a pandemia, mas tem forte ligação com a memória. Os contos são o exercício de um gênero pouco praticado por ela.

“Não sou uma contista, me acho mais uma romancista. Meu forte, quando escrevo ficção, é desenvolver lentamente uma personagem, criar uma atmosfera. O conto exige concisão, tem poder de condensação de narrativa muito forte, com o qual tenho dificuldade. Por isso escrevo menos”, explica.

Quando a editora sugeriu reunir textos escritos nos últimos anos, Ana Maria fez uma pesquisa para ver se conseguiria encontrar o fio condutor das narrativas. Queria evitar a “colcha de retalhos”, preferiu dar unidade à antologia.



“Vi que alguns (contos) tinham em comum o fato de apresentar rastros, vestígios, pegadas, um reflexo atual do passado ou sobre alguma coisa presente que vai se jogar para o futuro”, diz. “(Eles tinham em comum) o fato de mexerem com a memória, com a passagem do tempo e com as marcas que o tempo deixa na vida.”

A pandemia teve reflexos em vários livros publicados em 2020 e 2021 por autores contemporâneos brasileiros, mas Ana Maria ainda não viu o Brasil real aparecer em sua ficção.

“Seguramente, se viver o suficiente para isso amadurecer, isso vai aparecer. Mas meu processo é mais lento. Escrevi sobre 1968 em um livro que publiquei em 1988, escrevi sobre o denuncismo dos anos 2000 só dez anos depois”, comenta.

Por enquanto, ela ainda está perplexa com o Brasil. “É uma desgraceira, não tem como encarar como coisa boa”, lamenta. “A gente tenta se proteger por sobrevivência. Mao Tsé-Tung dizia que o primeiro dever do revolucionário é sobreviver. Então, vamos sobreviver. A gente tem que conseguir sair disso, tem que conseguir, por meio de união, o que é possível.”




CRISE CLIMÁTICA

A escritora lembra uma conversa com o colega acadêmico Alfredo Sirkis, pouco antes de ele morrer, em julho de 2020. Os dois discutiram a necessidade de a Academia Brasileira de Letras tomar partido e fazer algo em relação à desigualdade e às mudanças climáticas. Queriam entender por que o Brasil assiste a tudo isso de maneira um tanto passiva, se comparada a outros países.

“Outro dia, li uma entrevista da Marina Silva em que ela diz que não é possível que a gente não consiga incorporar os diferentes legados positivos que tivemos desde a redemocratização do país, que a gente tem de conseguir valorizar a responsabilidade fiscal, um trabalho conjunto para diminuir desigualdades sociais e a preocupação prementíssima com o meio ambiente, urgente para todos nós. Não é possível, isso é urgente urgentíssimo. Era para ontem, tinha de ter sido feito”, observa.

Ao comentar o ingresso de Gilberto Gil e Fernanda Montenegro na Academia Brasileira de Letras, Ana Maria diz que se trata de movimento natural da instituição. De acordo com ela, a ABL sempre foi muito variada, mas a mídia prestou atenção nisso agora. Lembra que cineastas e letristas, assim como afrodescendentes, há muito faziam parte dos quadros da casa.



“O Gil entrou derrotando um candidato negro, o Salgado Maranhão. Tá aí: este é um fato, um sinal dos tempos, uma abertura que está vindo. Mas não é só por isso, por causa dessas duas entradas, desse dois representantes deste momento tão simbólico de um momento novo”, garante.

(foto: Ática/reprodução)

“RASTROS E RISCOS”
De Ana Maria Machado
Memórias
Ática
128 páginas
R$ 36,24

(foto: Alfaguara/reprodução)
“VESTÍGIOS”
De Ana Maria Machado
Contos
Alfaguara
112 páginas
R$ 49,90

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