Jornal Estado de Minas

ARTES CÊNICAS

O genial dramaturgo Molière completa 400 anos, cercado de lendas


A França celebra o 400º aniversário do escritor Molière (1622-1673), nascido em 15 de janeiro, com apresentações teatrais, conferências e atos que se estenderão a outros países, como Reino Unido, Itália, Bélgica e Estados Unidos, embora com perfil discreto por causa da pandemia.





Não existe nenhum traço manuscrito de Molière, nenhum diário, nenhuma correspondência, nem mesmo notas de suas produções. A única sobrevivente de seus quatro filhos, Esprit-Madeleine, perdeu todos os escritos à mão do pai.

A primeira biografia do autor foi publicada em 1705, repleta de imprecisões que alimentaram a lenda em torno de Jean-Baptiste Poquelin – esse era o verdadeiro nome dele.

Molière escreveu cerca de 30 comédias em verso e prosa, entre elas “O misantropo”, “O burguês fidalgo” e “O avarento”, que se tornaram autênticos arquétipos humanos, assim como “Dom Quixote”, de Cervantes, e “Hamlet”, de William Shakespeare.

Poltrona de Molière, que foi usada em uma das encenações de "O doente imaginário" (foto: Betrand Guay/AFP )


A LENDA DE CORNEILLE

Como costuma ocorrer com gigantes da literatura mundial, Molière foi alvo de lendas. Entre elas, a de que não foi ele quem escreveu suas obras e, sim, outro gigante do teatro francês, Corneille.





Disseram também que suas comédias eram o reflexo de alguns de seus problemas pessoais. Em suas peças, utilizava recorrentemente a figura do homem traído.

Porém, quatro séculos depois, assim como ocorreu com Cervantes e Shakespeare, é incontestável que Molière e sua obra ultrapassaram – e muito – seus contemporâneos, em termos de popularidade.

“De certo modo, ele é um ator que se transforma em autor. É um autor que pensa suas obras a partir das imposições da cena, da aprovação do público, do efeito que terá no público. E também porque deve alimentar sua trupe”, explica Georges Forestier, autor da biografia de Molière lançada em 2018 e editor de sua obra para a coleção “La Pléiade”.

Editada em 1732, em Londres, antologia que reúne peças do dramaturgo está guardada na biblioteca da Comédie-Française, em Paris (foto: Raphaelle Picard/AFP )


CERTIDÃO E BATISMO

O mistério em torno de Molière começa com seu nascimento. A certidão de batismo foi encontrada em 1820. Sabe-se que foi batizado em 15 de janeiro de 1622, na igreja parisiense de San Eustaquio.





Segundo os costumes da época, explica Forestier, isso significa que ele nasceu um ou dois dias antes.

Primogênito de um estofador e garçom real, pertenceu a uma família de pequenos empresários com contatos com a corte, que naquela época ainda tinha como epicentros o Louvre e o Palácio Real.

Órfão de mãe aos 10 anos, Molière aprendeu a observar a vida e seus contemporâneos entre as luzes da corte e a vida das pessoas no Centro de Paris. O movimentado mercado de Les Halles ficava a dois passos da casa de seu pai.

Aprendeu grego, latim e noções de teatro graças aos jesuítas. Inteligente e leitor voraz, o jovem Jean-Baptiste leu Plauto e Terêncio. Logo entrou em contato com os teatros italiano e espanhol.

Aos 21 anos, deu um salto arriscado, embora tudo indique que o pai o tenha apoiado: decidiu renunciar à herança para se tornar ator.





Naquela época, comediantes, geralmente, eram excomungados, a menos que se arrependessem – algo que Molière não pôde ou não quis fazer no leito de morte.

Não se sabe ao certo por que decidiu ser ator, mas a morte do irmão mais novo, em 1660 ,permitiu que recuperasse o privilégio como estofador real.

Atores Xavier Gallais e Helene Bressiant encenam "Tartufo", em Marselha, em outubro de 2021, quando os teatros reabriram após o confinamento imposto pela pandemia (foto: Juliette Rabat/AFP )


CIA. TEATRO ILUSTRE 

Em 30 de junho de 1643, ele criou O Teatro Ilustre, sua própria companhia, com outros 10 atores, entre eles Madeleine Béjart, ruiva com muitas personagens e conhecida no meio literário.

Madeleine foi amante de um nobre rico e passou a ser amante de Molière durante três décadas.

Outro mistério: em 23 de janeiro de 1662, o já conhecido autor se casa com Armande, filha adúltera de Madeleine. Durante anos, as duas estiveram registradas como irmãs.





O costume francês era atores assumirem um “nome de guerra”. Madeleine era conhecida como La Bejart, Jean-Baptiste Poquelin escolheu Molière, localização geográfica muito comum na França. Não se sabe o porquê.

Carismático, Molière se tornou chefe de seu grupo. Mas em Paris havia duas companhias estabelecidas e a concorrência era implacável. O Teatro Ilustre acumulou dívidas e Molière acabou na prisão. O pai pagou as dívidas e o ator, ferido em seu orgulho, abandonou a capital com 23 anos.

Por 13 anos, Molière aperfeiçoou sua arte nas províncias. Performou para o público mais popular, para os nobres locais, para a burguesia. Passou a fazer sucesso e os lucros da companhia cresceram.

Numa época em que o teatro era o único meio de diversão em massa, embora sob estreita vigilância da Igreja Católica, ele produziu incessantemente para sobreviver.





Molière adaptou obras espanholas e italianas, mas decidiu confiar em seu talento. “As preciosas ridículas”, peça de 1659, fez um sucesso fenomenal. Um ano antes, já havia alcançado uma grande conquista: atuar para o jovem Luis XIV, monarca que adorava teatro e balé. O rei chegou a dançar para sua própria corte.

Em 1662, Molière deu mais um passo e escreveu “Escola de Mulheres”, retratando a educação absurda que qualquer jovem rica da época poderia usufruir. A reação da Igreja não demorou a chegar.

As dificuldades aumentaram com “O tartufo ou o impostor”, vingança particular de Molière contra os beatos e sua hipocrisia. Precisou reescrevê-la três vezes para evitar a censura. Destemido, começou a criar sua própria versão de um mito, o Don Juan.





O filósofo libertino de Molière foi um triunfo. Depois, chegou “O misantropo” (1666), sua comédia mais cruel, mas também a mais humana.
 
A COMÉDIA MORAL

Com essas obras, Molière criou um novo gênero: a comédia moral, empenhada em corrigir os vícios da sociedade, mas por meio da risada.

Os sucessos prosseguiram, interpretados pessoalmente por ele: “O avarento” (1668) e “Médico à força”, além de comédias de balé como “O amor médico” (1665).

Molière fez o papel de Argan em “O doente imaginário”, em 17 de fevereiro de 1673. Sentia-se indisposto. A lenda diz que morreu em cena, mas, na realidade, teve tempo de voltar para casa. Provavelmente, morreu de pneumonia. Sem se confessar. 

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