Em 2013, alguns meses após o infarto sofrido em agosto daquele ano, Ariano Suassuna reuniu-se com o professor da Universidade Federal de Pernambuco, Carlos Newton Júnior, em sua casa no Recife. Os dois retomavam ali os encontros de muitos anos. O acadêmico e ex-aluno, grande especialista na obra de Suassuna, o acompanhava na preparação do épico “Romance de Dom Pantero no palco dos pecadores”, em que Ariano trabalhava havia décadas.
Esse encontro não foi como os anteriores. Ariano pediu a presença de Manuel Dantas Suassuna, o terceiro de seus seis filhos. “Como ele teve o infarto, nos chamou para que se acontecesse de ele ir embora, a gente conduzisse a obra dele, principalmente aquele livro”, conta Dantas, o único dos filhos do casal Ariano e Zélia de Andrade Lima que se tornou artista.
O “encantamento” do pai, como diz ele, ocorreu um ano mais tarde – 23 de julho de 2014. E o romance “Dom Pantero” saiu em 2017 pela Nova Fronteira – livrão de mais de 1 mil páginas, divididas em dois volumes.
Desde a morte de Ariano, um condomínio administra sua obra – Dantas está à frente de tudo. Ao lado de Newton Júnior, ele atuou como consultor da exposição “Movimento Armorial – 50 anos”, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, em Belo Horizonte, até 7 de março.
Neste sábado (15/1), a partir das 19h, no CCBB-BH, os dois conversam sobre as artes visuais no universo armorial. Compondo a mesa estará também o designer Ricardo Gouveia de Melo, que assinou capas e projetos gráficos das mais recentes edições da obra de Ariano, que hoje integra a editora Nova Fronteira.
ERUDITO E POPULAR
O encontro integra o projeto “Conversas sobre a arte armorial”, série de debates que até o próximo sábado (22/1) vai lançar luzes sobre as diferentes vertentes do movimento. Lançado em 1971 por Ariano, o Armorial propôs, na base teórica escrita por ele, “uma arte brasileira erudita a partir das raízes populares da nossa cultura”. E tudo está incluído: literatura, dança, música, artes visuais, teatro.
“Ariano, além de uma obra indiscutível, criou uma poética, indicou caminhos que são princípios programáticos para a realização de uma obra de arte. Tais princípios não representam tolhimento da liberdade criadora, eles são abertos, como se indicassem uma direção. Ao estabelecer uma poética que diz que a cultura popular é fonte de inspiração constante para o artista armorial, o artista, se acredita nisso, é livre para escolher”, comenta Newton Júnior, que assina a curadoria do evento e atua como mediador das conversas.
No encontro sobre artes visuais, mediador e convidados falarão tanto sobre a xilogravura nordestina (que pode ser vista na exposição, em obras de Samico e Jota Borges), como escultura, cerâmica, tapeçaria. O armorial no mundo contemporâneo será um dos vértices do debate, que prima pelo diálogo entre as artes.
“De início, Ariano elegeu o folheto de cordel como uma espécie de símbolo do armorial. Ali você tem a capa baseada na xilogravura, o texto que pode dar origem a uma peça de teatro ou pode ser cantado. Não se pode pensar em uma edição de ‘A Pedra do Reino’ sem os desenhos, pois eles fazem parte da narrativa”, exemplifica Newton Júnior.
ILUMIARAS ANCESTRAIS
Na década de 1970, Ariano criou as chamadas lumiaras, que nos anos 1990 passaram a ser denominadas ilumiaras. O neologismo refere-se a “altares iluminados”. Sua origem é a Pedra do Ingá, na Paraíba, uma itaquatiara, monumento arqueológico com inscrições rupestres.
Ariano criou cinco ilumiaras, que em síntese são conjuntos artísticos que integram várias manifestações artísticas – a mostra no CCBB traz imagens de algumas, vale dizer. Uma delas, chamada “A coroada”, foi elaborada em sua própria residência, no bairro de Casa Forte, no Recife.
Dantas tem levado adiante o pensamento do pai. Além da publicação de sua obra – outro título recente é “A pensão de Dona Berta” (2021), em que Newton Júnior reuniu as histórias que Ariano contava –, o artista tem trabalhado nas ilumiaras. A que leva o nome de Jaúna fica em Taperoá, Paraíba – é uma grande escultura feita em pedra, releitura da Pedra do Ingá.
“Uma coisa muito importante da arte armorial é a ancestralidade. Na minha obra, tento transmitir isso com um olhar contemporâneo”, completa Dantas.
A literatura oral do mestre Ariano
Bráulio Tavares chegou a Belo Horizonte em 1969. O jovem paraibano, então com 19 anos, morava fora de casa pela primeira vez. Veio à capital mineira para estudar na Escola Superior de Cinema da PUC-Minas. A saudade de casa era apaziguada semanalmente, com as cartas que o pai, apaixonado pela poesia, lhe enviava.
Nesta época surgiu o Movimento Armorial. Junto às missivas paternas sempre vinham jornais do Recife, em que eram destacados os poemas de Ariano, autor que Tavares conhecia desde os 10 anos, quando o descobriu por meio de “O auto da Compadecida”.
Em 1971, Ariano lançou o romance “A Pedra do Reino”, para Tavares uma das obras fundadoras de sua “história pessoal de leitura e escrita”. Sem pensar duas vezes, ele deixou o curso de cinema, arrumou as malas e voltou para a Paraíba. “Fui redescobrir o Nordeste”, conta.
Neste domingo (16/1), Tavares, ao lado da atriz e diretora Inês Viana, conversa com Carlos Newton Júnior sobre o teatro no Movimento Armorial.
O ABC DE SUASSUNA
Escritor, poeta, letrista, dramaturgo e um dos grandes especialistas do Brasil de literatura fantástica, Tavares tem três trabalhos em torno da obra de Ariano: foi corroterista do telefilme “A farsa da boa preguiça” (1995) e da minissérie “A Pedra do Reino” (2007), ambos dirigidos por Luiz Fernando Carvalho para a Globo. Ainda em 2007, lançou o livro “ABC de Ariano Suassuna”.
“Gosto de inventar paradoxos. Então, eu diria que Ariano é um escritor de literatura oral. Ao ler grande parte da obra, você quase que ouve a voz dele dizendo o texto. E o teatro do Ariano tem vínculo maior com a comédia do que com a tragédia. Se observar cronologicamente, ele, muito jovem, começou a escrever tragédia. Mas depois que a primeira comédia fez sucesso (‘O auto da Compadecida’), ele descobriu o veio mais autêntico da oralidade. Nos textos, são histórias engraçadas que acontecem em voz alta.”
Tavares só foi conhecer Ariano pessoalmente depois dos 40 anos “Tínhamos muita coisa em comum, apesar da diferença de quase 30 anos. Ariano, como eu, lia muito, gostava de romances policiais, de aventura, de pirata. Conversávamos não naquele tom de dois intelectuais, mas como dois leitores. E o papo de leitor é o melhor que tem”, afirma Bráulio.
ENCONTROS
A programação paralela da mostra “Movimento Armorial 50 anos” conta também com a série “Encontros musicais”. No teatro do CCBB serão realizados, sempre às 20h, os seguintes shows: Grupo Rosa Armorial (19/1), do Paraná; Antônio Nóbrega (20/1), com “Recital para Ariano”; Quinteto da Paraíba (23/2) e Trio Lancinante (25/2). Entrada franca. Retirada de ingressos: bb.com.br/cultura
CONVERSAS SOBRE A ARTE ARMORIAL
Os encontros serão sempre às 19h, no teatro do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), Praça da Liberdade, 450, Funcionários. Entrada franca. Ingressos devem ser retirados em bb.com.br/cultura
>> Neste sábado (15/1)
Artes visuais. Com o artista plástico Manuel Dantas Suassuna e o designer gráfico Ricardo Gouveia de Melo
>> Domingo (16/1)
Teatro. Com a atriz e diretora Inez Viana e o escritor, dramaturgo, compositor e poeta Bráulio Tavares
>> Sexta (21/1)
Música. Com o instrumentista, compositor e bailarino Antônio Nóbrega e a cantora Isaar França
>> Sábado (22/1)
Dança. Com a bailarina e coreógrafa Maria Paula Costa Rêgo, cofundadora, com Ariano, do Grupo Grial e o brincante e bailarino popular Pedro Salustiano