Jornal Estado de Minas

PALÁCIO DAS ARTES

Chris Tigra, Matheus Dias, João Angelini e Erre Erre abrem exposições em BH

Com as exposições “Recostura”, da paulista radicada em Belo Horizonte Chris Tigra, e “Campo de passagem”, do cearense Matheus Dias, a 2ª edição do Prêmio Décio Noviello de Fotografia se coloca como palco de discussão sobre raça, gênero e outras questões prementes no cenário social brasileiro. Também oferece espaço ampliado de percepção sobre o que é uma mostra fotográfica, pois ambos trabalham com a apropriação de imagens de arquivo.



Com abertura marcada para esta quinta-feira (20/1), na CâmeraSete – Casa da Fotografia de Minas Gerais, tanto “Recostura” quanto “Campo de passagem” revolvem traumas do passado que reverberam nos dias de hoje – a primeira, na esfera coletiva; a segunda, no âmbito mais íntimo e pessoal.

PRECONCEITOS ESTRUTURAIS

Chris Tigra expõe imagens em grande escala de mulheres negras escravizadas, trazendo à tona a memória escravocrata, por vezes renegada, mas estruturalmente reproduzida até os dias atuais. Nas fotografias, a artista costura manualmente cordas e ataduras, reconstruindo elos.

Já Matheus Dias apresenta fotos recortadas, coladas, sobrepostas, queimadas e unidas a elementos diversos em que estão retratadas sua própria trajetória e as batalhas a que estão sujeitos o que ele chama de corpos dissidentes.





“A ‘recostura’ não é aquilo que a gente está vendo, é muito mais do que a imagem, é o que se percebe dela. Nem penso o trabalho como mostra fotográfica, mas como mostra de arte no sentido mais amplo. O trabalho tem a ver com o que reverbera das imagens, aquilo que a gente apreende, porque a partir do momento em que intervenho, elas já mudam”, aponta Chris Tigra.

Imagens de mulheres escravizadas e os documentos que balizam a mostra foram encontrados em consultas ao Arquivo Nacional, à Biblioteca Nacional e a acervos públicos e privados, como o do Instituto Moreira Salles. Chris destaca que a pesquisa vai além do que está reunido em “Recostura”.

“O que mostro ali, as imagens das mulheres escravizadas com costuras feitas a mão, é um recorte”, diz. Em 2020, já durante a pandemia, ela começou a pesquisar em acervos históricos digitais tudo relacionado às palavras escrava, escravidão, escravos.





“São coisas que a gente não aprende na escola, e tudo o que a gente vive hoje tem a ver com esse passado. Minha busca é entender melhor o momento atual, cada vez mais desigual, com tantas pessoas abaixo da linha da pobreza, morando nas ruas do centro da cidade”, explica.

O título “Recostura” sintetiza muitas questões que permeiam o conjunto das obras. O desejo de trabalhar o bordado – ou o “feitio de coser”, nas palavras de Chris – surgiu a partir do momento em que ela se deparou, no Arquivo Nacional, com o decreto que proibia mulheres escravizadas de usarem rendas que elas mesmas teciam. “Aquilo foi muito forte”, salienta.

Ritos de passagem e "corpos dissidentes" inspiraram trabalhos de Matheus Dias (foto: Matheus Dias/divulgação )


“Recostura” se relaciona com rever, repensar, reorganizar, revisitar e unir um ponto a outro, afirma Chris Tigra. “Muita coisa precisa ser revista. O quão distante a gente está da escravidão? Minas está no topo da lista suja do trabalho escravo em fazendas. Os senhores de terra, a classe dominante, desde a época da abolição trabalha pela manutenção daquilo que supostamente estava sendo abolido. O Brasil é um país com maioria de pretos e pobres que continuam trabalhando como elemento servil, como os escravizados eram chamados”, ressalta.





As fotos são apresentadas em grandes formatos, colocadas acima dos olhos, como vitrais das igrejas. “Tem a ver com contemplação, no sentido de pensar nesse lugar de quem a gente admira, quem é autoridade”, aponta.

Ela observa que a “recostura” só ocorre quando algo foi descosturado. “Esse trabalho tem a ver com o negro escravizado, pessoas forçadas a trabalhar, a ama de leite, a mulher que não amamentava seus filhos porque tinha de amamentar os bebês brancos. Tudo o que a gente vive hoje vem disso aí. Fico, por meio da arte, olhando essas urgências, a questão climática, os corpos originários. Nesse sentido, meu trabalho tem pontos de encontro com o do Matheus”, considera.

Com efeito, apesar de migrar da esfera coletiva para a particular, Matheus Dias, em “Campo de passagem”, aborda questões muito próximas daquelas exploradas por Chris. Ele também se vale do termo “recostura” para explicar o que pretende com a exposição.





“Esse trabalho é um espaço de cura, uma ‘recostura’, remontagem, uma forma de reescrita da história a partir de processos, alguns positivos e outros traumáticos, da minha própria vida. É um caminho de reencontro comigo mesmo, de rever minhas heranças e raízes indígenas e negras. A fotografia é suporte de transição, de acolhimento desses sentimentos e dessas reconfigurações”, aponta.

O título da mostra alude a rituais de passagem, a transições entre as fases da vida. “Criei esse campo de passagem, que não é estadia, é um rito que está dentro do processo de individuação, de reconhecimento de meu ser. Passei por uma série de situações e construções sociais que me colocavam em um corpo que não era meu, um corpo cis, heteronormativo. Esse campo me ajudou a me reencontrar”, diz.

SUBJETIVIDADE E DISSIDÊNCIA

De acordo com Matheus, “Campo de passagem” representa um olhar íntimo sobre a questão dos corpos dissidentes, presente em todo o seu trabalho. “Sobretudo neste período, em que a gente vive com esse governo, é fundamental conseguir ocupar o espaço da arte mostrando nossa individuação, nossa humanidade, pois somos corpos normalmente desumanizados. Meu trabalho passa por mostrar a pessoa que existe por trás dos estereótipos”, ressalta.





“Campo de passagem” é a primeira exposição individual do artista cearense, resultado, conforme ele destaca, do processo intenso de vasculhar as próprias vivências. No final de 2019, após um período depressivo, Dias notou intenso apagamento de sua identidade, acarretado por uma série de traumas – de assédios a preconceitos de toda ordem.

Trabalho de João Angelini remete à geopolítica e à ocupação territorial (foto: João Angelini/divulgação)

João Angelini e Erre Erre no Palácio das Artes

O Prêmio Décio Noviello se completa com a sessão dedicada às artes visuais por meio de outras duas exposições a partir desta quinta-feira (20/1), nas galerias Genesco Murta e Arlinda Corrêa Lima do Palácio das Artes.

João Angelini, do Distrito Federal, e o mineiro Erre Erre apresentam, respectivamente, “Do que fomos feitos e o que deixamos” e “Quero dançar sobre as ruínas dos reinos da escuridão”. Há pinturas, desenhos, colagens, gravuras, objetos, apropriações artísticas, site specific, instalações, holografias e fotografias.





Angelini explora processos manuais e laborais de criação artística, confrontando-os com fazeres dos trabalhadores na atualidade, trazendo discussões sobre ocupação territorial, geopolítica e economia. Já Erre Erre constrói ruínas a partir da união de fragmentos artísticos que fizeram parte de sua carreira, criando narrativas que se reformulam com o tempo, a partir das mãos do próprio artista.

PROGRAMAÇÃO

>> Exposições “Recostura”, de Chris Tigra, e “Campo de passagem”, de Matheus Dias. Desta quinta-feira (20/1) a 11 de março, na Câmera Sete (Av. Afonso Pena, 737, Centro). Funciona de terça-feira a sábado, das 9h30 às 21h. Entrada franca.

>>  Exposições “Do que fomos feitos e o que deixamos”, de João Angelini, e “Quero dançar sobre as ruínas dos reinos da escuridão”, de Erre Erre. Desta quinta-feira (20/1) a 12 de março, nas galerias Genesco Murta e Arlinda Corrêa Lima do Palácio das Artes (Av. Afonso Pena, 1.537, Centro). Funcionam de terça-feira a sábado, das 9h30 às 21h, e domingo, das 17h às 21h.

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