Jornal Estado de Minas

'CINEMA E (RE)INVENÇÕES'

Karla Vaniely vai ao cinema pela primeira vez para ver estreia de seu filme


Karla Vaniely Rodrigues tem 24 anos, é apaixonada pela sétima arte, mas nunca assistiu a um filme no cinema. A sala de sua cidade, Januária, no Norte de Minas Gerais, está fechada há mais de 30 anos. “Nunca tive a emoção de comprar o ingresso, a pipoca e aguardar a sessão começar”, ela diz. A espera vai acabar nesta quinta-feira (20/1), quando Karla se sentará diante da tela grande na sala escura – com um detalhe: para assistir a seu próprio filme, “Fi di quem?”.





Realizado no ano passado, “Fi di quem” tem roteirio, produção e direção de Karla. Foi um dos selecionados pelo 7º Prêmio BDMG Cultural/Fundação Clóvis Salgado destinado a curtas-metragens de baixo orçamento. Integra a mostra “Cinema e (Re)Invenções”, em cartaz no Cine Humberto Mauro desde 14 de janeiro.

“TATO GESTUAL” 

“Fi di quem?” participa do programa temático “Tato gestual”, que encerra a mostra e abarca os curtas “APP”, de Aisha Brunno, “Não há ninguém perto de você”, de Juliana Antunes, e “Decifra”, de Cícero Menezes, todos de Belo Horizonte.

Karla não só vai assistir à sessão, como participar de um debate com os outros diretores. O bate-papo terá transmissão pela plataforma CineHumbertoMauroMAIS, às 19h. O intuito é conhecer um pouco mais sobre o processo de produção de cada filme, desmitificando a realização cinematográfica. O público é convidado a participar, enviando perguntas ao vivo através do chat.





O envolvimento mais profundo de Karla com o cinema começou em 2015, quando ela se formou no ensino médio. A porta de entrada foi aberta por Alfred Hitchcock.

“Tinha um canal do YouTube que eu acompanhava, o apresentador fazia críticas e indicava filmes. Ele falou de ‘Psicose’. Fiquei curiosa. Peguei a bicicleta, fui à banca de DVDs e pedi ao dono para baixar. Ele ficou surpreso, porque é um filme da década de 60. Assisti no notebook e achei uma loucura. Entendi a ideia de clássico. Passei a voltar à banca sempre – a cada dia pedia para baixar um Hitchcock diferente”, recorda a diretora.

Foi ali que Karla resolveu fazer cinema, embora, aparentemente, nada contribuísse para a realização de tal desejo no contexto vivido por ela. “Pensei: ‘Onde estou? Em Januária, no sertão de Minas, não tem faculdade de cinema aqui’. Meus pais falaram que não tinha condição de eu fazer cinema, mas comecei a ler bastante sobre roteiro, estudar tudo a meu alcance, e comecei a escrever muito também”, conta.

Corta. Salta para setembro de 2020. Karla estava na loja Cinemá, que mantinha com a amiga Luane Gomes, onde a dupla pintava camisetas com motivos cinematográficos, quando foi procurada por Gleydson Mota, que a convidou para integrar o coletivo Cine Barranco, criado por ele no final de 2019 com a proposta de dar um cineclube para Januária.




PANDEMIA MUDOU TUDO

Cine Barranco chegou a apresentar, no centro de artesanato da cidade, três sessões – de “Bacurau”, dirigido por Kleber Mendonça Filho, “Abril despedaçado”, de Walter Salles, e “O menino e mundo”, de Alê Abreu – antes da chegada da pandemia, quando se viu obrigado a reconfigurar suas atividades.

“Com a chegada da Lei Aldir Blanc, o Gley estava chamando todos os artistas da cidade para escrever projetos. Ele me encontrou pelo Instagram, por causa da minha lojinha. Comecei no Cine Barranco já com o projeto para fazer o documentário ‘Cine Januária’, sobre o cinema da cidade que está inativo há 30 anos”, diz, destacando que sua única experiência, até o momento, de pisar dentro de uma sala de exibição foi aquela – num cinema praticamente em ruínas.

Com a chegada da pandemia e a impossibilidade de o coletivo Cine Barranco continuar atuando como cineclube, o foco passou a ser a produção audiovisual.

“Cine Januária” contou com o suporte do BDMG Cultural para sua realização, está pronto e aguardando momento mais propício para ser lançado. Karla aponta que a Lei Aldir Blanc e o 7º Prêmio BDMG Cultural/Fundação Clóvis Salgado permitiram ao coletivo levar o projeto adiante.





“Quando a gente ficou sabendo do edital do BDMG e da Fundação Clóvis Salgado com temática livre, todo mundo do Cine Barranco quis produzir. Somos seis integrantes, ficamos todos muito empolgados, porque cada um podia ter sua própria identidade ali. Paralelamente ao ‘Cine Januária’, fui fazendo o ‘Fi di quem?’”, conta Karla.

“O período entre setembro de 2020 e setembro de 2021 foram três anos em um: no início, a gente estava aprendendo, fazendo tudo no celular, depois conseguimos comprar material e produzir. Fizemos vários filmes, documentários e uma série, tudo por meio da Lei Aldir Blanc”, informa.

Formado por Gleydson Mota, Samylla Alves, Ernane Silva (Nan Ferresi), Luane Gomes e Maria Clara Almeida, além de Karla, o coletivo Cine Barranco conseguiu emplacar outros dois filmes no 7º Prêmio BDMG Cultural/Fundação Clóvis Salgado: “Betha Ville”, de Maria Clara, exibido em 17 de janeiro, e “Perspectiva”, de Luane, que entrou na programação da mostra “Cinema e (Re)Invenções” como menção honrosa, ao lado de outros sete títulos.



Bordadeiras de Januária adoraram ser atrizes de 'Fi di quem' e querem mais papéis no cinema (foto: Karla Vaniely/acervo pessoal)

Câmera na mão e conversa na calçada


A ideia para “Fi di quem?” surgiu durante o processo de realização de “Cine Januária”. Quando a equipe do coletivo entrevistava pessoas mais velhas para saber a história do antigo cinema da cidade, sempre ouvia a pergunta, ao fim da conversa: “Você é filho de quem?” – ou, em bom “mineirês”, “Cê é fi de quem?”. O questionamento aguçou a curiosidade de Karla Vaniely.

“Por que as pessoas do interior de Minas sempre perguntam isso? Minhas inspirações foram minha avó e minha tia, que sempre ficavam sentadas na porta de casa, na rua, conversando. Como minha avó diz, conversa de comadres. Januária é cidade pequena, todo mundo conhece todo mundo, e nas conversas as pessoas sempre são associadas aos parentes. No bate-papo do meu pai com o vizinho, eles gastam uns cinco minutos só tentando identificar quem é determinada pessoa. Fiquei com isso na cabeça, pensei que dava um filme legal”, comenta a diretora.

FICÇÃO 

Como o prazo era curto para entregar o filme a tempo da seleção do Prêmio BDMG Cultural/ Fundação Clóvis Salgado, não daria tempo de fazer investigação documental. Por isso ela resolveu apostar na ficção.





“Fui botar em prática o que tinha aprendido lendo sobre roteiros. Escrevi pensando numa comédia, duas pessoas tentando adivinhar quem é a terceira sobre quem estão conversando. Chamei duas amigas bordadeiras do centro de artesanato, Joana e Socorro, e falei que elas só tinham de fazer o que sabem fazer de melhor: ficar sentadas proseando, seguindo o roteiro que eu tinha escrito. Também chamei a Luane para ajudar”, diz.

As amigas bordadeiras gostaram muito da experiência e já se prontificaram a participar como atrizes de produções futuras do Cine Barranco. “Quando o curta foi aprovado pelo edital, falei que elas iam ficar famosas”, diz Karla.

Com os projetos aprovados na Lei Aldir Blanc, o coletivo conseguiu comparar câmera, lente, gravador e microfone. “Para fazer ‘Fi di quem?’, filmamos com câmera digital e celular, usando dois pontos de microfone, um para cada personagem. A gente gravou no centro de artesanato, só precisamos de duas cadeiras e dois pontos de microfone”, relata. O processo de escrita do roteiro, produção e realização do curta ocorreu em um mês.





Quando o resultado da seleção do 7º Prêmio BDMG Cultural/ Fundação Clóvis Salgado foi divulgado, os integrantes do Cine Barranco estavam nas respectivas casas, escrevendo outros projetos.

“Mas a gente ficava entrando no site toda hora para saber se já estava lá. Quando saiu, comecei a tremer. Nem tinha visto meu filme na lista ainda. Quando vi, tremi mais ainda e suei de felicidade. Tirei o print e mandei para todo mundo. O Gley chorou. Depois vimos que o curta da Maria Clara também tinha sido selecionado e que o da Lu ganhou menção honrosa. Foi uma felicidade enorme para todo mundo, o indicativo que estamos no caminho certo”, conta.

Gleydson Mota, Karla Vaniely, Maria Clara Almeida, Ernane Silva, Samylla Alves e Luane Gomes formam o coletivo Cine Barranco (foto: Coletivo Barranco/reprodução)

Filmes ao alcance de todos

Adepta de Glauber Rocha, a mineira Karla Vaniely acredita que basta uma câmera na mão e uma ideia na cabeça para fazer cinema. Este é o recado que o coletivo Cine Barranco tenta passar para os moradores de Januária e região.





“Queremos continuar fazendo cinema para a nossa gente, desmistificar a ideia de que você precisa estar nos grandes centros para fazer filmes. Espero que nosso trabalho sirva de estímulo”, diz Karla.

Os planos dela são investir cada vez mais no aprendizado e na produção audiovisual. Dos integrantes do Cine Barranco, Maria Clara Almeida já estuda cinema no Recife (PE), e Karla quer seguir o mesmo caminho, porque considera a capital pernambucana polo cinematográfico muito potente no panorama brasileiro.

“Tenho alguns roteiros prontos que pretendo tirar do papel, mas o que a gente quer mesmo é continuar estudando bastante, cada um se especializando cada vez mais, e continuar produzindo. Talvez possa até tentar fazer uma faculdade de cinema. O pessoal está me incentivando a ir para Recife, onde a Maria Clara está, estudar lá, me aprofundar. A gente admira muito o Kleber Mendonça Filho, o Irandhir Santos. Queremos fazer filmes por todos os editais que aparecerem”, informa a jovem diretora de Januária.

“CINEMA E (RE)INVENÇÕES”

Exibição dos curtas “APP”, de Aisha Brunno; “Não há ninguém perto de você”, de Juliana Antunes; “Decifra”, de Cícero Menezes; e “Fi di quem?”, de Karla Vaniely. Sessão presencial nesta quinta-feira (20/1), às 19h, no Cine Humberto Mauro do Palácio das Artes (Av. Afonso Pena, 1.537, Centro). Transmissão pela plataforma CineHumbertoMauroMais. Entrada franca.

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