Jornal Estado de Minas

MEMÓRIA

Elza Soares deixa legado de resistência e talento para a cultura brasileira


“Mulher do fim do mundo/ eu sou/ eu vou/ até o fim cantar”, crava Elza Soares no verso final de “Mulher do fim do mundo”, canção do disco homônimo lançado em 2015. E assim foi. A cantora carioca, que morreu de causas naturais, aos 91 anos, nesta quinta-feira (20/1), no Rio de Janeiro, estava em plena atividade até o fim do ano passado. Havia agendado para 17 e 18 deste mês o registro audiovisual de seu show no Theatro Municipal de São Paulo. A gravação geraria álbum ao vivo, além de conteúdo para o canal de vídeo dela.





“Ícone da música brasileira, considerada uma das maiores artistas do mundo, a cantora eleita como a ‘Voz do Milênio’ teve uma vida apoteótica, intensa, que emocionou o mundo com sua voz, sua força e sua determinação. A amada e eterna Elza descansou, mas estará para sempre na história da música e em nossos corações e dos milhares fãs por todo o mundo. Feita a vontade de Elza Soares, ela cantou até o fim”, diz o comunicado oficial de familiares e da equipe da artista.

O velório será no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, nesta sexta-feira (21/1).  À tarde, o corpo será sepultado no Jardim da Saudade Sulacap.

GARRINCHA: PAIXÃO ETERNA

Elza morreu no mesmo dia de Garrincha. Tiveram relação apaixonada e casamento turbulento – ele faleceu em 20 de janeiro, em 1983, já separado dela. “Viajo para o paraíso quando penso nele (Garrincha). Sonho com ele até hoje. O Brasil (Seleção) morreu com ele”, contou ela a Pedro Bial, em programa exibido pela Globo.

O título de “Voz Brasileira do Milênio” veio da emissora britânica BBC em 1999, mas a trajetória de Elza teve início na década de 1950, quando começou a fazer sucesso cantando sambas. Nada foi fácil. Nascida na favela Vila Vintém, em Padre Miguel, era filha de mineiros: pai operário (Avelino Gomes) e mãe lavadeira (Rosária Maria da Conceição). Avelino a obrigou a se casar aos 12 anos com Alaordes, que abusara dela. Tiveram três filhos, o marido morreu de tuberculose e deixou à jovem Elza o trauma da violência e da brutalidade sexual e a missão de cuidar dos três filhos.





A moça trabalhou em hospício, encaixotou sabão, lavou roupas, subiu favela com lata d'água na cabeça, passou fome. Perdeu um bebê para a fome.

Nos anos 1950, Elza iniciou a carreira artística na Rádio Tupi, ao participar do programa do mineiro Ary Barroso. Subiu ao palco do “Calouros em desfile” e cantou “Lama”. O célebre compositor perguntou: “De que planeta você vem, menina?”. Ela respondeu: “Do mesmo planeta que você, seu Ary. Eu venho do planeta fome”. Venceu o concurso. Usou o dinheiro para comprar remédio para o filho.

O álbum de Elza lançado em 2019 se chama justamente “Planeta fome”. Quase 60 anos separam esse título de seu debute fonográfico oficial. O primeiro contrato foi assinado em 1960, para o lançamento de “Se acaso você chegasse”. O contrato já incluía a turnê internacional.

Elza lançou 34 discos e coleciona vários sucessos: “Salve a mocidade” (Luiz Reis, 1974), “Bom dia, Portela” (David Correa e Bebeto Di São João, 1974), “Pranto livre” (Dida e Everaldo da Viola, 1974) e “Malandro” (Jorge Aragão e Jotabê, 1976).





Nesse percurso, cantou samba – com o qual era muito identificada nos primeiros anos de sua carreira –, mas também brilhou nas searas do jazz, da música eletrônica, do hip-hop, do funk. Avessa a rótulos, dizia que a mistura é proposital.

“Sempre quis fazer coisa diferente, não suporto rótulo, não sou refrigerante”, comparava. “Acompanho o tempo, não estou quadrada, não tem essa de ficar paradinha aqui não. O negócio é caminhar. Caminho sempre junto com o tempo”, declarou.

Desde que lançou o álbum “A mulher do fim do mundo”, em 2015, Elza experimentou o renascimento artístico. Na verdade, outro renascimento, pois teve momentos de certo ostracismo alternados com outros de sucesso retumbante.



RAINHA DO SAMBALANÇO 

Nos anos 1960, conquistou seu espaço cantando o chamado “sambalanço”, com discos gravados com Miltinho (1928-2014) e com o baterista Wilson das Neves (1936-2017). Na sequência de “Se acaso você chegasse”, vieram “O samba é Elza Soares” (1961), “Sambossa” (1963), “Na roda do samba” (1964) e “Um show de Elza” (1965).

Outras fases se seguiram. Nos anos 1970, escolheu interpretar o samba mais castiço, lançado nos discos “Elza pede passagem” (1972), “Nos braços do samba” (1975) e “Senhora da terra” (1979).

Os anos 1980 foram cruéis. Shows escassearam, Garrincha morrera, a indústria fonográfica mudou. Pensou até em desistir da carreira, pediu ajuda a Caetano Veloso. O auxílio veio por samba-rap. “Língua”, faixa do álbum “Velô” (1984), é obra-prima do baiano.





“Língua” mostrou a bossa negra de Elza Soares a uma nova geração e abriu caminho para que a ela lançasse, em 1985, trabalho menos voltado para o samba. “Somos todos iguais” tinha canção de Cazuza (1958-1990). Caminho sem volta. Sem abandonar completamente o samba, Elza se permitiu aventurar por outras sonoridades.

Em 2002, com direção artística de José Miguel Wisnik, fez um dos álbuns mais modernos de sua discografia, “Do cóccix até o pescoço”, com canções de Arnaldo Antunes, Jorge Ben Jor, Carlinhos Brown e d'O Rappa, além do próprio Wisnik. “Dura na queda” é a faixa que Chico Buarque compôs especialmente para o musical dedicado à vida de Elza. “Dor de cotovelo”, de Caetano Veloso, também era dedicada a ela.

“Do cóccix até o pescoço” (Maianga Discos) rompeu com outra fase de relativa morosidade que a cantora atravessou durante a década de 1990. Dois anos depois, “Vivo feliz”, lançado pelo selo independente Reco-Head, não repercutiu tanto quanto o antecessor. Mas traz ali o passo, possivelmente, mais ousado de sua carreira, pois Elza flerta abertamente com a eletrônica e o rap, em meio a composições de Mundo Livre S/A e Nando Reis.





Outro marco: “A mulher do fim do mundo”. Concebido e dirigido por Guilherme Kastrup, o disco se ancora no núcleo paulistano que reúne os grupos Passo Torto e Metá Metá – Rômulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Marcelo Cabral e Douglas Germano, autor do single “Maria da Vila Matilde”. Com letra que denuncia a violência contra a mulher e poderoso refrão (“Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”), a canção fez de Elza, aos olhos das novas gerações, símbolo da luta contra todo tipo de opressão e preconceito.

Críticos apontaram o “renascimento” de quem já era fênix há tempos. Com esse disco, Elza se apresentou pela primeira vez no Rock in Rio, bateu nove milhões de execuções no aplicativo Spotify e conquistou o Grammy Latino 2016 na categoria melhor álbum de MPB.

No texto de apresentação de “A mulher do fim do mundo”, Kastrup escreve: “A mulher do fim do mundo é que permanece. A heroína com a força de um furacão. Deusa profana, que dialoga com o tempo e a morte. Elza Soares é uma artista corajosa acima de tudo, não tem medo de nada! Nada é moderno demais pra ela. Nenhuma dissonância a assusta, nenhuma distorção a intimida. Com sua fome do novo, se transforma sempre. Nasce e renasce e de novo mais uma vez, como a Fênix que tem tatuada no tornozelo.”




DEUS FEMININO E MULHER

O disco seguinte, “Deus é mulher” (2028), seguiu o mesmo caminho – o título veio do verso da canção do carioca Pedro Luís. A produção de Guilherme Kastrup, Marcelo Cabral, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Rômulo Fróes reuniu faixas de Tulipa Ruiz, Pedro Luís e Mariá Portugal, entre outros.

Nos últimos tempos, Elza fez parcerias com o rapper mineiro Flávio Renegado. Lançaram “Negrão negra” e o samba “Black power”, temperado com pitadas de rap. Regravaram “Divino maravilhoso”, de Caetano e Gil.

“Estamos atravessando um momento chato, mas lutamos contra esse horror do preconceito racial. Para isso canto uma música que fala lindo de nossa Mãe África, uma mamãe preta. O Flávio Renegado é bom demais e pedimos atenção à letra da música: uma letra que deixo ‘modernona’ ao meu jeito”, disse Elza à época do lançamento de “Negrão negra”.





Ontem, a reportagem tentou falar com Flávio. Não foi possível. Ele só conseguiu mandar emojis com carinhas às lágrimas, desconsoladas.


TRÊS ÁLBUNS FUNDAMENTAIS

(foto: Reprodução)

“Se acaso você chegasse” (1960)
Lançado pela Odeon, traz no título o nome do presente que Lupicínio Rodrigues deu à cantora. “Foi a música que me deu chance de abrir fronteiras, de abrir caminhos”, disse Elza Soares. O sucesso explosivo da jovem negra incomodou tanto que, no fim dos anos 1960, a casa onde morava com seu marido, o jogador Mané Garrincha, sofreu um atentado que motivou a fuga deles para a Itália, onde ficaram amigos do Chico Buarque e sua esposa na época, Marieta Severo.
(foto: Reprodução)

“Do cóccix até o pescoço” (2002)
Marco da produção fonográfica brasileira. Conecta samba e rap, couros e beats, lirismo e protesto, tradição e modernidade. Mostra que a arte de Elza Soares reflete o presente em qualquer época. O repertório destaca inéditas de Chico Buarque (o samba “Dura na queda”), Jorge Ben Jor (o funk “Hoje é dia de festa”), Caetano Veloso (“Dor de cotovelo”), Carlinhos Brown (“Etnocopop”) e Arnaldo Antunes (“Eu vou ficar aqui”, de suingue próximo do samba).
(foto: Reprodução)

“A mulher do fim do mundo” (2015)
Primeiro registro de inéditas em mais de cinco décadas de carreira. Com direção artística de Romulo Fróes e produção do experiente Guilherme Kastrup, transporta para o samba torto paulistano parte da essência da artista carioca apresentada por Ary Barroso no início dos anos 1950. Ambientações ruidosas, batidas e melodias sujas se completam pela presença de Rodrigo Campos (cavaco, guitarra), Kiko Dinucci (guitarra, violão), Marcelo Cabral (baixo, sintetizador). Um “punk-samba”, como definiu Celso Sim, colaborador da canção “Benedita”.




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