Jornal Estado de Minas

MEMÓRIA

Artistas negros destacam a coragem e o pioneirismo de Elza Soares

 
A voz negra de Elza Soares se calou, deixando o Brasil de luto. “A música nunca mais será a mesma”, avisa Milton Nascimento. “A voz do milênio, vá em paz Elza Soares”, lamentou o rapper Mano Brown. “Quando Elza lançou 'Se acaso você chegasse', a força da sua voz e a sua personalidade conquistaram todos de uma só vez. Uma mulher que lutou desde muito cedo contra várias formas de opressão e cuja contribuição vai além do universo da música brasileira”, despediu-se Paulinho da Viola.





“Honro Elza Soares. Honro a mulher, a artista, a cidadã, a amiga. Ela é foda! Sempre foi e sempre será! Dura na queda, nos ensinou a levantar a cabeça a cada tombo e depois seguir”, afirmou a atriz Taís Araújo, outro talento negro do Brasil, que, como Elza, não se cansa de combater o racismo e o machismo.

“Ela nos ensinou que é a gente quem leva a vida, que o comando é nosso e quando a gente perde o rumo, cabe a nós mesmos encontrar o caminho de volta. Perdi uma ídola e ganhei uma ancestral forte, firme, uma luz. Alterno lágrimas com risos, lembrando as histórias e me pego pensando no legado deixado por Elza: cabeça erguida e passos firmes. Te amo, Elza! Vc é pra sempre”, postou Taís.


LÁGRIMAS E AGRADECIMENTO

Lázaro Ramos, um dos raros astros negros do país e marido de Taís Araújo, também se despediu da musa: “Elza. Elza. Elza. Só lágrimas neste momento. Tanto que queria falar e agradecer, mas não há palavras suficientes que possam expressar o tanto que sinto com sua partida. Obrigado por inspirar tanto e por não se calar nunca. Obrigado, Deusa maior”.





A atriz mineira Erika Januza também tem a cantora como referência em sua carreira, lutando por espaço para os negros na TV e no cinema. “Elza Soares se foi, no mesmo dia de Garrincha. Chove tão forte lá fora, não há gota que não sinta”. E a cantora Preta Gil, filha de Gilberto Gil, relembrou a vida “simplesmente incrível” da artista. “Nossa 'Voz do Milênio' nos deixou hoje”, lamentou.

O rapper Rashid era outro fã inconsolável. “Dona Elza Soares descansou. Gigantesca. Inspiradora. A voz do milênio! Dedicada à arte até agora. Das maiores de nossa história, só agradeço por tudo que fez”, afirmou.

Cantora e parlamentar, Leci Brandão disse que o Brasil perde um exemplo. “Perdemos não só uma das melhores cantoras e vozes mais potentes do Brasil, mas também uma grande mulher, que sempre defendeu a democracia e as boas causas.”




 

MINAS NO CORAÇÃO

Querida em Minas Gerais, Elza dizia que suas raízes estão aqui. “Minha família é toda mineira: avós, pais, marido, há toda uma relação com o povo mineiro, que sempre me recebeu muito bem!”, afirmou, quando recebeu o título de Cidadã Honorária de BH, em 2019.

Em 2016, Elza encerrou a programação da Virada Cultural de Belo Horizonte, na Praça da Estação. A multidão a ovacionou, assim como ocorrera em show no Sesc Palladium, meses antes.

“Maria da Vila Matilde” foi cantada com emoção pela artista e pela plateia: “Cadê meu celular?/ Eu vou ligar pro 180/ Vou entregar teu nome/ E explicar meu endereço/ Aqui você não entra mais/ Eu digo que não te conheço/ E jogo água fervendo/ Se você se aventurar”, diz a canção, recado visceral para os machistas, abusadores e assediadores sexuais.

Depois de sofrer um tombo, apresentou-se amparada por uma cadeira no Festival I Love Jazz, promovido pelo Estado de Minas, na Praça da Papa, em 2010. Não perdeu o tom uma vez sequer.

Em outras ocasiões, o cantor, compositor e multi-instrumentista mineiro Maurício Tizumba subiu ao palco várias vezes com ela. “Grande artista, um exemplo de resistência, enquanto mulher, enquanto negra. Lembro-me de um baterista que tocava com o Célio Balona e, na época, estudava em um terreiro na casa do meu avô, tocando em cima do disco dela. Naquela época Elza já cantava as coisas de resistência”.



Em BH, no Festival I Love Jazz, cantora se apoia em cadeira depois de um acidente que machucou sua perna (foto: Eugênio Gurgel/EM/D.A Press/2010)

CONVIDADA DO TAMBOR MINEIRO 

Tizumba se orgulha de ter trazido Elza para BH para participar do festejo do Tambor Mineiro, dividindo o palco com a cantora. “Elza foi homenageada pela Mocidade Independente, fui convidado para desfilar na escola. Tive uma história muito bonita com ela”, diz o mineiro.

Elza foi madrinha da carreira de Vander Lee (1966-2016). A cantora Regina Souza, ex-mulher dele, lembra o carinho da cantora pelo mineiro. “A última vez que me encontrei com ela foi no Rio, quando fui assistir à estreia de Elza e ela ficou muito emocionada. Levei a minha filha Clara, que estava na minha barriga quando a gente se conheceu, num show do Vander Lee no Palácio das Artes. Emocionada, ela falou com a Clara assim: “Eu amava seu pai, ele está no meu coração”. E se emocionou de ver a Clara já grande”, lembrou Regina.

O compositor Makely Ka abriu para Elza em um show. “Um dos maiores orgulhos foi uma vez quando cheguei a Nova York e tinha um show dela no Central Park. Elza estava na capa do caderno de cultura do New York Times. Você, como brasileiro, chega em outro país e vê uma artista nessa situação, dá o maior orgulho”, diz ele.





Para Makely, Elza atravessou praticamente o século 20, cantou todos os estilos, lançou vários artistas. “E desafiou o status quo, os preconceitos todos, desde o programa do Ary Barroso”, lembra. “Uma cantora negra que sempre fez questão de dizer de onde vinha e de estabelecer essa relação com a periferia, com a negritude, de sempre levantar essas bandeiras. Uma perda lastimável para a cultura brasileira”, conclui.


A musa (sofrida) de Garrincha

Elza Soares e Garrincha em casa, no Rio de Janeiro, em 1964 (foto: Rubens Américo/O Cruzeiro/EM/D.A Press/18/7/64)

Elza Soares teve forte ligação com o futebol. Mais especificamente com um jogador, ou melhor, um craque: ninguém menos que Garrincha, o Anjo das Pernas Tortas, bicampeão com a Seleção Brasileira em 1958 e 1962, com quem foi casada de 1966 a 1982 e teve o filho Manoel Francisco dos Santos Júnior, o Garrinchinha.

Eles se conheceram no fim de 1961 e, segundo Ruy Castro, na biografia “Estrela solitária”, a cantora não se impressionara, até por considerar o jogador “um menino” – era três anos mais velha do que ele. O romance engatou depois da conquista do bi no Chile, no ano seguinte, quando ambos ainda estavam comprometidos – ela com o músico Milton Banana, inventor da bateria da bossa nova, ele com Nair.





Tinham mais em comum do que serem pessoas públicas e adoradas pelos fãs. Nasceram em famílias pobres, trabalharam em fábricas, venceram adversidades e se tornaram expoentes de suas profissões.

A paixão foi tamanha que o craque praticamente só aparecia no Botafogo em dia de jogo. Elza, por sua vez, passou a se negar a fazer shows fora do Rio por medo de “o avião cair”. Na verdade, o tempo deles era dedicado a muito sexo, regado a álcool. Afinal, Garrincha era famoso tanto pelos dribles quanto pelos porres.

Elza foi acusada de ter “destruído uma família” pelos conservadores. E também de estar com o jogador só por dinheiro, ao defender que Garrincha não aceitasse renovar contrato com o Botafogo por menos que o pretendido. Perseguidos e ameaçados, mudaram-se para a Itália.

De volta ao Brasil com o fim da carreira do craque se aproximando e o alcoolismo batendo à porta, começaram os problemas. As discussões não raramente terminavam em agressões verbais e também físicas.





Nada disso impediu Elza de guardar boas recordações do companheiro. “O Mané (Garrincha) era alegre e feliz, apesar das maldades que faziam com ele. Ele era muito brincalhão e estava sempre sorrindo. Se não fosse a maldita bebida, talvez o Mané ainda estivesse aqui conosco”, afirmou, em certa ocasião.

O casamento chegou ao fim depois de 16 anos, ela abriu mão de receber pensão. Quis apenas a guarda do filho, concedida pela Justiça.

Pouco depois da separação, Garrincha morreu, em 20 de janeiro de 1983, em decorrência de cirrose hepática. Elza Soares nunca mais se casou, mas namorou muito.

Nem mesmo a morte de Garrinchinha, em 1986, em acidente de carro, tirou a força desta mulher, cantora e artista. Ela ainda perdeu o filho Gílson, de 59 anos, vítima de complicações decorrentes de infecção urinária, em 2015.