“Vou preparar o caminho para ele ser mais ou menos um Jordan. Não quero vê-lo como apresentador de TV, comentarista”, diz Neymar da Silva Santos, o Neymar pai. A imagem de Michael Jordan debulhado em lágrimas no funeral de Kobe Bryant domina a sala de televisão da casa de Neymar Jr. na França, no início de 2020. O clima está pesado não só pela tragédia que matou a estrela da NBA.





Neymar foi do céu ao inferno rapidamente. “Ele foi embora para ser protagonista. E se arrependeu rapidamente. Ninguém vai embora do Barcelona”, aponta Juca Kfouri. O ano de 2019 é uma grande ressaca para aquele que chegou ao Paris Saint-Germain em 2017 como o mais caro jogador de todos os tempos. Lesões o tiraram de campo, uma tentativa fracassada de retornar ao time espanhol, hostilidade da torcida do PSG. Os gritos de “hijo de p...” entoado no Parque dos Príncipes, em setembro de 2019, ainda ecoavam. Alguma coisa tinha que acontecer.

Pai e filho nos tempos em que o garoto paulista ainda era promessa do futebol brasileiro

(foto: Netflix/Divulgação)

RADIOGRAFIA INTIMISTA

Com estreia nesta terça-feira (25/1) na Netflix, a minissérie em três episódios “Neymar: O caos perfeito” nasceu como um projeto sobre a temporada 2019/2020 do atleta. Foi muito além, fazendo uma radiografia do craque. Passado, presente e futuro por meio de um olhar muito próximo, íntimo, dos dois Neymar e do mundo que os cerca.

“O sonho de todo documentarista é capturar a transformação de seu personagem central”, afirma o diretor do projeto, David Charles Rodrigues. Do “Juninho”, que dá título ao primeiro episódio, passando por “Neymar do Brasil” até chegar ao momento “O pai tá on”, bordão que o jogador passou a utilizar nas vitórias do PSG na Liga dos Campeões, a trajetória de Neymar é vista sem sensacionalismo e tampouco panos quentes. Não houve, segundo o diretor, nenhuma intervenção da família.





“O caos perfeito” (título sugerido pelo próprio Neymar) é fruto de parceria da Uninterruped, produtora de LeBron James, outra estrela da NBA, com a Netflix.



Nascido em Boston, filho de mãe americana e pai brasileiro, o diretor David Charles, de 41 anos, viveu em Belo Horizonte dos 8 aos 24. Por influência do pai, Paulo Antônio Santos Rodrigues, que continua em BH, é torcedor do Cruzeiro. Saiu da capital mineira para voltar a viver nos EUA – primeiramente em São Francisco e, desde 2010, em Los Angeles.

Como documentarista realizou “Gay chorus deep south” (2019), filme que acompanha a excursão de dois corais gays de São Francisco pelo Mississippi, Alabama, Tennesse e Carolinas do Norte e do Sul, estados americanos com o maior número de leis discriminatórias contra a comunidade LGBTQIA+.

“Meu objetivo é poder mostrar o lado humano das pessoas, misturando entretenimento com uma história de impacto. No caso dos corais gays, era música com ativismo. No do Neymar, o que havia por baixo da história do jogador e da celebridade”, comenta David Charles. Foram dois anos imersos na trajetória da família Silva Santos – meia dúzia de viagens a Paris, outras duas incursões ao Brasil.



Neymar chegou ao PSG em 2017, viveu o céu e o inferno no Parque dos Príncipes e não conseguiu voltar ao Barcelona

(foto: Netflix/Divulgação)

DE MESSI AOS PARÇAS 

David entrevistou o círculo íntimo de Neymar – a mãe, Nadine, os amigos (os famigerados parças), outras estrelas do futebol (Messi e Suárez, que compuseram com o brasileiro a tríade de ouro do Barcelona, mais David Beckham, Mbappé, Daniel Alves e Thiago Silva). E também funcionários da NR Sports, empresa criada para cuidar da imagem do atleta, bem como pessoas que conviveram com ele no início da carreira, tanto antes e também já como estrela do Santos. Há também críticos, o maior deles o já citado Juca Kfouri. A trilha sonora é assinada por Tejo Damasceno, do Instituto.

Entrar na intimidade da família de Neymar foi um desafio, diz David. “Confiança é um processo, como em qualquer documentário. Fiquei bem surpreso porque foi mais rápido do que esperava. É difícil contar a história de alguém que está no jornal e no Instagram do tempo inteiro”, diz. Conseguiu até filmar no quarto do jogador, lugar sagrado, diz David. Só ali ele fica realmente sozinho.

Com o Neymar pai foi mais difícil. “Acho a história dele uma das maiores sobre um brasileiro. O cara foi de jogador de várzea para pedreiro em 10 anos. E de pedreiro ele fechou o maior contrato da história do futebol. Você não consegue fazer isso sem ter personalidade forte. Ao longo do tempo, fui o entendendo, e não o julguei. Acho que ele é muito julgado”, continua David.





Neymar pai fala para a câmera, mais de uma vez, que está preparando o caminho para Neymar Jr. quando ele se aposentar dos campos – o que, espera, ocorra em 10 anos, no máximo. Nas reuniões, cita os números de Neymar nas redes sociais – “200 milhões de espectadores” –, mas fica latente que a relação pai e filho vai se tornando mais distante. Neymar revela que atualmente o vê menos como pai do que como empresário.

Trabalhando com equipe mínima – diretor de fotografia, assistente e o profissional para captar o som –, o documentarista capturou momentos de alta tensão. Estava na casa de Paris gravando outra sequência quando, na sala, o tom começou a subir. Os dois Neymar não se entendiam.

“A coisa mais importante que conquistamos foi a estruturação da sua imagem”, afirma o mais velho. O filho diz que ele é agressivo com todos que o cercam. “Não gosto de ter essas conversas porque a gente já começa... Por isso que acato tudo, para não criar conflito.” No meio da discussão há menção à acusação de estupro, outra sombra para Neymar no fatídico 2019.



Neymar e o diretor David Charles Rodrigues

(foto: Corine Schiavone/Divulgação)


LONGE DAS MULHERES

Mas há momentos fofos, principalmente da relação do jogador com o filho, Davi Lucca. Sequências de festas, muitas delas familiares. Não há menção alguma a namorada ou affair do jogador. “Minha intenção era usar momentos do presente para refletir o passado. No momento em que filmei, ele não estava namorando. Então seria gratuito falar disso”, alega David.

As passagens mais relevantes de Neymar no Santos, Barcelona, Seleção Brasileira e PSG são reconstruídos por meio de muita edição. Somando o que filmou e o material de arquivo, David acredita ter trabalhado com mil horas de gravação.

Da parte brasileira, diz que a falta de acesso ao material da Globo foi um problema. Há imagens antigas de várias emissoras. “Todo mundo cresceu vendo futebol pela Globo, e como eles não cederam as imagens, isso criou uma dificuldade no processo de edição”, comenta.





A produção consegue criar climas de suspense e tensão em partidas transmitidas e noticiadas nos quatro cantos do mundo. Em 11 de março de 2020, exatamente o dia em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia da COVID-19, o PSG tentava uma vaga nas quartas de final da Liga dos Campeões, o que não ocorria com o time desde 2016.

Na partida no Parque dos Príncipes contra o Borussia Dortmund, Neymar abriu o placar com um gol de cabeça. Ninguém viu, pois o estádio estava sem público. Do lado de dentro, porque lá fora centenas de torcedores apoiavam o time. Veio o segundo gol, de Bernat, e o PSG conseguiu chegar às quartas com o resultado de 2 a 0.

Com a multidão comemorando, os atletas foram até o alto do estádio para encontrar a torcida. Neymar, um dos mais empolgados. Era ali ainda um menino. Mas não o mesmo que havia chegado ao time três anos antes.

“NEYMAR: O CAOS PERFEITO”

A minissérie documental, em três episódios, estreia nesta terça-feira (25/1), na Netflix

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