A câmera passeia pelos ambientes, devassando para o espectador uma época que não lhe pertence. Salões de baile, escadarias a perder de vista, quartos imensos, estátuas, criadagem em intenso vaivém, mordomos, copeiras, senhoras enfastiadas dentro de seus vestidos com camadas de tecido.
Esse é o universo do roteirista e produtor Julian Fellowes, aquele que maravilhou meio mundo a partir de 2010 com o lançamento da série “Downton Abbey” (que durou até 2015, gerou um longa-metragem em 2019 e tem outro a caminho). As comparações são inevitáveis, mas a recém-estreada “The gilded age”, da HBO, pretende seguir seu próprio caminho.
Sai de cena a Inglaterra da primeira metade do século 20 para dar lugar à Nova York da Era Dourada, o período de prosperidade e transformação que os Estados Unidos passaram pós-Guerra Civil (1861-1865). Em outro ambiente, Fellowes leva seu olhar afiado para os ricos (também os não tão ricos e os nada ricos), assim como para mostrar um mundo em movimento.
ELITE
O dinheiro é o norte: o antigo, que corresponde à tradição e à aristocracia, e o novo, conseguido pelo trabalho, geralmente sem linhagem alguma. “Ela construiu um palácio para entreter o tipo de pessoa que nunca virá aqui”, diz, de forma zombeteira, Turner (Kelley Curran), uma das empregadas de Bertha Russell (Carrie Coon).Em 1882, os Russell, depois de três anos vivendo numa área menos nobre de Nova York, finalmente chegaram ao topo. Construíram um palacete invejável na rua 61, na esquina com a Quinta Avenida, ao lado do Central Park. Mesmo habitando o lugar da elite, não são aceitos por ela.
Sua vizinha que mora em frente, Agnes van Rhijn (Christine Baranski), já disse que o novo dinheiro não lhe interessa. Viúva de personalidade forte, vive com (e sustenta) a irmã, a solteirona afável Ada Brook (Cynthia Nixon). O cotidiano recolhido por trás de pesadas cortinas de veludo carmim das irmãs é afetado com a notícia de que seu irmão mais velho, que vive na Pensilvânia, morreu.
Não deixou absolutamente nada para a filha, Marian Brook (Louisa Jacobson, a caçula de Meryl Streep). Jovem, bonita e sem posses (e nenhum outro parente ou pretendente em vista), ela vai viver com as tias – Agnes a recebe um tanto a contragosto, pois havia cortado relações há anos com o irmão, depois que ele a havia lesado. Marian não sente a pressão das diferenças sociais – com ideias próprias, não vê razão alguma para não se aproximar dos Russell, que fizeram fortuna com a construção de ferrovias.
MULHERES
Logo no episódio-piloto fica claro que “The gilded age” será uma narrativa centrada em mulheres, com o embate entre o antigo e o novo como eixo central. Como coprotagonista, a narrativa traz uma jovem negra, Peggy Scott (Denée Benton), que Marian trouxe, por acidente, da Pensilvânia. Inteligente e com pretensões a se tornar escritora, ela logo se torna a secretária de Agnes.Em entrevista coletiva virtual, Fellowes e o produtor-executivo da série, Gareth Neame, comentaram que “The gilded age” estava no radar há pelo menos 10 anos – há cinco o projeto começou a sair do papel.
“Começou quando li um livro sobre Alva Vanderbilt (socialite e sufragista) e sua filha Consuelo, uma das mais famosas dollar princesses (basicamente, jovens americanas muito ricas que foram para a Europa no final do século 19 em busca de títulos nobres, adquiridos via casamento). Li muito sobre essas pessoas e houve um tempo em que quis fazer uma série sobre os Vanderbilt. Mas, se você escreve sobre pessoas reais, tem que escrever sobre o que realmente aconteceu, o que seria restritivo. Então, inventei as famílias, mas tudo foi feito com um grande time de pesquisa”, disse Fellowes.
Para ele, a história americana do período é “muito absorvente e fácil de dramatizar, já que muitas dessas pessoas pensavam que eram gigantes”. Para Fellowes, foi durante a Era Dourada que os EUA “tomaram as rédeas de seu destino”. “Antes da Guerra Civil, a aristocracia de Nova York era basicamente formada por famílias europeias. Depois, as pessoas criaram palácios, museus, óperas, sentiram-se confiantes para dominar o mundo ocidental. Não eram mais um pastiche de Londres ou Paris – eram uma sociedade própria.”
Como uma jovem negra frequentando um ambiente dominado pelos brancos ricos, a personagem de Denée Benton tem uma função maior. “Ela lida com o patriarcado em casa e com a supremacia branca fora de casa. E a Peggy começa a escrever numa época em que ela era invisível. Você vai vê-la encontrar sua própria voz não só na escrita criativa, como também na política, pois faz parte de uma nova classe que estava começando naquele momento”, comentou a atriz.
Mas, ao menos neste início de temporada, os grandes momentos são de Agnes e Ada. Christine Baranski e Cynthia Nixon, agora vivendo irmãs, estrearam juntas em 1983 como mãe e filha em uma peça de Tom Stoppard. “Na época, estava grávida de minha filha e voltamos agora de maneira maravilhosa. Temos o mesmo senso de humor, e acho que a relação de Agnes e Ada tem muito da de um velho casal, pois são muito protetoras uma com a outra.” Atenção para as falas e a interpretação de Baranski: o veneno escorre, e a gente se diverte com isso.
“THE GILDED AGE”
Série em 10 episódios na HBO e HBO Max. O primeiro está disponível; os demais serão lançados sempre às segundas, às 23h, no canal pago e na plataforma de streaming.